Fernando Rosa - Ondas Tropicais Livro Lambada Beiradão

Entrevista: Fernando Rosa mergulha nas sonoridades da Amazônia

O jornalista Fernando Rosa fala em entrevista exclusiva ao el Cabong sobre as sonoridades da Amazônia, tema que aborda em seu livro “Ondas Tropicais – A Invenção da Lambada e do Beiradão na Amazônia Moderna”.

Famoso pelo vasto conhecimento sobre o rock no Brasil e pela preciosa coleção de discos raros, o jornalista gaúcho Fernando Rosa resolveu mergulhar em outras águas: os sons da Amazônia. Aos 64 anos, Rosa,  também conhecido como Senhor F, acaba de lançar por sua própria editora o livro “Ondas Tropicais – A Invenção da Lambada e do Beiradão na Amazônia Moderna”. Como já indica o título, o jornalista faz um panorama de ritmos da região Norte, em especial a produção de lambada, guitarrada, carimbó e beiradão entre os anos 1970 e 1980.

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Os textos tiveram origem em sua revista eletrônica, o site Senhor F (www.senhorf.com.br), onde trata de artistas independentes e obscuridades musicais brasileiras, latino e ibero-americanas. Além do site, sua atuação é conhecida em outras esferas, como o selo Senhor F Discos, por onde lançou nomes como Superguidis e Beto Só. Produz também o festival El Mapa de Todos, com edições em Porto Alegre e Brasília, e sempre dando voz à música latina por aqui. No livro, ele defende a importância da música da região amazônica, “a mais importante pós-Bossa-nova”. Apresentando seus fundadores e principais representantes. Além de listar os álbuns mais importantes e mostrar uma discografia com 200 obras. Nesse entrevista, ele explica melhor sobre esses ritmos amazônicos e sua importância, Fala também por que eles não são tão presentes na vida dos brasileiros como deveriam.

Ondas Tropicais Fernando Rosa Sonoridades Amazônia

De onde partiu seu interesse de mergulhar na música da Amazônia e escrever um livro focado no tema?

Fernando Rosa – Bem, primeiro sempre tive um interesse pela região do ponto de vista geral. Acho que isso começou com a leitura de “Cobra Norato”, o maior poema épica brasileiro, sobre a região, de autoria de Raul Bopp, um gaúcho. Sempre ouvi muita música brasileira, apesar de muita gente achar que só me liguei em rock. Então, ouvi Paulo André Barata, Vital Lima, Fafá de Belém, esses sons mais, digamos, de MPB regional. Mas o interesse real, que está no livro, veio nos anos dois mil, com a “descoberta” da guitarrada. Os dois gêneros, a lambada-guitarrada e o beiradão, por acaso, tem meus dois instrumentos preferidos como carros-chefes: a guitarra e o saxofone. Dai, comecei a ouvir, prestar mais atenção ao entorno, à construção dos gêneros, e, mais recentemente, a pesquisar mesmo.

Falando em guitarra, por que você acha que a guitarra, um instrumento tão próprio e até mais vinculado ao rock, se desenvolveu tanto na região?

A região amazônica, incluindo Brasil e Peru, é a única região da América Latina em que a guitarra elétrica é um instrumento popular. Isso ocorre com a lambada e com a cúmbia psicodélica peruana, os dois gêneros “puxados” por guitarras elétricas, e fonte de grandes mestres. No lado brasileiro, tem a ver com duas causas, digamos, uma o anterior uso do cavaquinho pela maioria dos futuros futuros guitarristas, e outra, a influência do rock dos anos sessenta, dos Beatles etc. No lado peruano, é praticamente a mesma gênese, a mesma construção. Veja que Pinduca modernizou, “popificou”, o carimbó introduzindo duas guitarras (solo/base, do rock) em lugar do tradicional banjo. A guitarra peruana ainda conserva um pouco de “rock” em sua execução, mas a guitarra da lambada tem mais a ver com a linguagem do chorinho.

Você no livro lista diversos nomes como importantes para a música do Norte, Pinduca, entre eles, mas pra você quais são os imprescindíveis para a formação dessas sonoridades e por que?

O primeiro capítulos trata de destacar esses nomes que considero os mais importantes, os mestres estruturantes do gênero, e da música Norte. Ao final do livro, também destaco 8 discos que considero fundamentais, como principais referências para se ter um panorama geral da música daquele período. Bem, para mim, o principal, o mais importante de todos, é Mestre Cupijó, por ser ele, talvez, o único brasileiro que funde a música das três raças (a nossa formação) – indígena, negra e europeia.

Depois, tem Pinduca, que fez do carimbó um gênero pop, Mestre Vieira, o inventor da lambada e da guitarrada, Teixeira de Manaus, o “pai” do beiradão com seu saxofone particular e, por fim, Curica, o mestre maior do banjo amazônico (aliás, única região onde o instrumento é importante). Também destacou outros nomes que são mistos de artistas e produtores, que deram forma ao conteúdo produzido na região, entre eles Alypyo Martins, Manoel Cordeiro e Carlos Santos, também dono da Gravasom, a gravadora decisiva para definir a música da região Norte nos anos oitenta, especialmente.

“A lambada é a música apropriada para um novo Brasil, dançante, de raiz mas pop, latino, sexual sem apelação etc.”

Como você vê a importância dessa música fora da Amazônia, para o resto do país? Até onde ela influenciou nacionalmente?

O Brasil tem ciclos de incorporação das sonoridades regionais ao caldeirão musical nacional. Nos anos setenta, tivemos a “invasão nordestina”, depois a música baiana. A lambada chegou a ter um grande espaço nacional, mas a música da região ficou isolada. Diante disso, no entanto, o Norte construiu um mercado regional, próprio, incluindo o Nordeste, até o Norte da Bahia. Essa herança é muito forte, produziu hits, discos, artistas populares. Acho que hoje é a música apropriada para um novo Brasil, dançante, de raiz mas pop, latino, sexual sem apelação etc.

Mas essa música feita na Amazônia tem tudo isso, uma longa história, relevância incontestável e uma sonoridade rica e pop, assim mesmo, fora Alipio Martins, Fafá de Belém e Gaby Amarantos, quase nenhum artista se tornou popular nacionalmente. A que você acha que se deve isso?

Acho que tem a ver com várias razões. Uma delas, o isolamento, a distância do grande centro. Por outro lado, a música do Norte tem mais a ver com a música latina e caribenha do que com a música popular tradicional brasileira. Talvez por isso, enfrente o mesmo tipo de resistência, ou dificuldade, é melhor, que os brasileiros em geral têm em relação à música latina. Mas, acredito que o principal é o fato da sonoridade ter um acento mais regional, e menos pop, no sentido de uma mediação com o ouvido médio nacional.

Quando isso ocorreu, como com Pinduca e Fafá de Belém, por exemplo, a barreira foi vencida. Atualmente, vejo que isso ocorre com a Dona Onete, um exemplo radical da junção das duas linguagens – a regional, roots, com a modernidade instrumental. Também acho que os anos oitenta, com a supremacia do rock-BR, de certa forma brecaram a entrada de novos sons no cenário nacional.

Mestre Cupijó Música Amazônia Sonoridades Amazônia
Mestre Cupijó, o mais importante de todos os mestres, segundo Fernando Rosa. “Talvez o único brasileiro que funde a música das três raças, indígena, negra e europeia”.
Mas apesar de agradar públicos diversos, os ritmos amazônicos são tratados fora da região quase sempre como folclóricos ou como simples modas. Acha que existe um preconceito com a música do Norte?

Não sei se a palavra certa é preconceito. Penso que, de fato, existe uma incompreensão, que no livro tento superar. Uma dificuldade em compreender uma outra linguagem musical. Veja, a guitarra do “centro” é “rock”, a guitarra do Norte é “chorinho”, ou seja, está fora do padrão. Os guitarristas do Norte não ficam nada a dever para qualquer grande guitarrista do centro do país. O saxofone tem mais a ver com o merengue do que o samba de gafieira do Sudeste. Então, acho que isso tudo contribuiu para existir as duas situações. Uma rotulação de “roots”, quando na verdade é moderno, mas de uma maneira diferente. Por exemplo, quando se fala em aproximação com a música latina, a Região Norte fez isso com naturalidade, faz parte de sua construção sonora.

“A música do Norte tem mais a ver com a música latina e caribenha do que com a música popular tradicional brasileira. Talvez por isso, enfrente o mesmo tipo de resistência, ou dificuldade, é melhor, que os brasileiros em geral têm em relação à música latina.”

A lambada, o carimbó e até a guitarrada conseguiram de certa forma furar a bolha e chegar a outros públicos, mas o beiradão me parece ainda muito restrito ao Norte. Consegue enxergar alguma razão para isso?

O beiradão é uma conceituação bem moderna, inclusive com contestação de segmentos musicais do Amazonas – um questionamento sobre sua caracterização como gênero. E tem uma sonoridade bem mais popular, de festa, com muita influência nordestino, do forró especialmente. Então, trata-se de um gênero musical com menos atrativos. Embora tenha um grande mestre – Teixeira de Manaus – e vários saxofonistas importantes. Os artistas mais jovens estão resgatando o gênero agora, ou seja, depois de que os paraenses resgataram a guitarrada. Também a dimensão da abrangência do gênero é menor, por limitação da região. Beiradão são as comunidades ribeirinhas, onde os artistas construíram a sonoridade. Sem instrumentos elétricos, e com instrumentos fáceis de carregar pelos barcos e rios.

Discos Teixeira de Manaus Ondas Tropicais Sonoridades Amazônia
Discos de Teixeira de Manaus, o “pai” do Beiradão e um dos nomes destacados por Fernando Rosa em ‘Ondas Tropicais’
Houve essa nova cena no Pará que ganhou visibilidade, mas não temos tantos artistas do Amazonas atuais tão conhecidos. Acha que podemos ver essa cena crescer? Que nomes destacaria?

Tem uma cena importante nesta década. Uma quantidade bem grande de grupos e artistas, que produzem uma música de grande qualidade. Destacaria Marcelo Nakamura, por exemplo, um ótimo compositor e cantor, com um disco e alguns singles gravados. Alaidenegão é uma banda mais conhecida em Manaus e com um certo conhecimento em nível nacional, com dois ótimos discos. Tem uma banda nova chamada Mady e Seus Namorados, que resgatam com humor e qualidade instrumental, mais roqueira, a lambada e o beiradão.

Vale destacar ainda o Orquestra de Beiradão do Amazonas, um combo que moderniza o som do gênero. Um dos músicos mais atuantes do Amazonas é Rosivaldo Cordeiro, que vive entre Manaus e Paris, entre a lambada e o chorinho. Ele está concluindo um tributo aos três mestres da guitarrada do Amazonas – Oséas, André Amazonas e Magalhães da Guitarra. Mas, tem mais gente. Acredito que é uma cena que tem muito potencial para crescer. Tem uma pegada próxima do Pará, mas mais leve, mais malemolente, com mais influência do som nordestino.

Você afirma que a Lambada é o gênero musical mais importante pós-bossa nova, jovem guarda, tropicalismo? Por que?

Primeiro, porque criar um gênero musical em qualquer lugar do mundo, como diz Pio Lobato, que cito no livro, é um feito. Mais ainda quando isso ocorre em uma região isolada, fora dos centros de poder e decisão de políticas culturais. Também por ancorar um mercado regional sem precedentes no país, com uma gravadora, estrutura de estúdio. Incluindo uma banda, esquemas de veiculação, de distribuição, etc. Falo da gravadora Gravasom. É um gênero que produziu dezenas de artistas populares, guitarristas clássicos, como Mestre Vieira, Aldo Sena, Barata, André Amazonas. E artistas que desenvolveram uma carreira, com vários discos gravados. Mestre Vieira, por exemplo, entre 1978 e 1990, lançou 13 LPs.

Me parece que há um forte incômodo com a ideia que a lambada nasceu na Bahia. Há de fato? Você acha que faltou uma indústria com visão mais pop como foi com a lambada na Bahia e com o Axé para tornar os ritmos do Pará mais palatáveis para o restante do país?

Sim, existe esse incômodo, que acho justificável. Mas acho que o problema principal é que as coisas aconteceram em momentos distintos. Quando a lambada, mesmo a baiana, “estourou”, o mercado original do Norte já está em final de festa. A era de ouro da lambada do Norte vai de 1980 a 1990, no máximo, quando entram em cena os derivativos da lambada do Kaoma. Ou seja, não havia abertura, nem know how cultural para ocupar o mercado central. A experiência de sucesso, até então, era Pinduca, que chegou ao Sudeste. A alternativa possível, viável, imagino, naquele momento, era apostar no mercado regional, no nicho. Aliás, isso ocorreu em várias partes do mundo, inclusive na música pop internacional.

Por outro lado, a música baiana, por sua relação anterior com a indústria do disco, tinha um poder de atração/repercussão maior, bem maior. Tem um release, por exemplo, de um artista paraense, produzido pela assessoria da imprensa da gravadora, que apresentava a lambada como um gênero nascido na Bahia, que havia subido pelo Nordeste e se encontrado no Pará.

Qual a dimensão da Gravasom em toda essa produção do Norte?

A Gravasom, em Belém, depois da Rozenblit, em Recife, talvez seja a experiência de indústria musical mais interessante e bem sucedida do país. Pelo fato de ser uma gravadora regional, por ter se transformado em uma referência de sonoridade, por ter sido a fonte de um novo gênero musical. De propriedade do cantor, radialista e, depois, apresentador de televisão, Carlos Santos, tornou-se uma grande empresa regional, com estúdio, rede de rádios, distribuição própria, acordo com gravadoras nacionais. Imagino que, sem a Gravasom, essa herança discográfica e musical acumulada não existiria. Não apenas em relação à lambada e a guitarrada, mas também à música brega.

E pela sua pesquisa, qual a razão de tão poucas reedições dos discos?

Bem, ai o problema é o drama da centralização da indústria discográfica em menos de meia-dúzia de grandes majors. A Gravasom, por exemplo, passou pela Continental, depois para a Atração, onde está hoje. Mas não se sabe quantos discos, quais discos estão com essa ou aquela gravadora. Poe outro lado, a quantidade se selos regionais era grande, o que dificulta a ideia de relançamento em qualquer plataforma. O que começa a ocorrer são alguns títulos de nomes mais conhecidos, como Mestre Vieira e Aldo Sena, relançados pela Som Livre, ou pela Atração. Mas a imensa maioria permanece refém do formato vinil, em sebos ou no Mercado Livre. Da minha parte adoraria relançar, pelos menos, uns cinquenta discos desses.

“A música do Norte precisa defender mais sua história, sua produção – como os baianos fazem corretamente. A música é de grande qualidade, tem uma demanda enorme por ela.”

A música paraense viveu recentemente um boom, mas pareceu ser tratado mais como uma moda do que como uma real valorização dos ritmos amazônicos. Como vê esse boom mais recente que teve nomes como Felipe Cordeiro, Gaby Amarantos, entre outros? Considera que eles estão dando continuidade a essa música? Quem destacaria?

Sim, acho que estão. Mas sigo com a impressão que a música do Norte precisa defender mais sua história, sua produção – como os baianos fazem corretamente. A música é de grande qualidade, tem uma demanda enorme por ela. Fiz uma discotecagem dia desses aqui em Brasília, e foi um sucesso, com um público grande e bem diverso. A produção da música do Norte permite você transitar entre o roots e o moderno. Os dois nomes citados são exemplo disso, mas tem outros, no Pará e no Amazonas, com produção mais destacada.

Ia perguntar sobre isso agora. Como enxerga a produção atual, há uma valorização desses ritmos, ou hoje é algo tratado apenas como tradição. Acha que há uma renovação real?

Sim, tem uma produção referenciada na história, nas influências, nos clássicos. Não se trata apenas de revival, ou coisa assim. Lucas Estrela, por exemplo, o mais jovem dos guitarristas evidencia isso em seus discos. Avança na linguagem. Gang do Eletro fez isso, cruzando com o tecnobrega. A própria Dona Onete é uma evolução.

Você acha que seu livro, o Filme Amazônia Groove, e a coletânea Jambú e os sons míticos da Amazônia podem ajudar a uma nova valorização dos sons da Amazônia?

Acho que está rolando uma onda “pró-Amazônia”, na qual acabamos pegando carona por acaso. São iniciativas interessantes que chamam a atenção para a música da região. Isso, no entanto, não é a primeira vez que acontece. Nos anos dois mil, a Abril produziu um documentário sobre a música do Pará. Mas, como tudo no Brasil tem um delay de, pelo menos, uma década, acredito que agora a coisa é mais forte. Além do exemplos citados, o Rock in Rio terá uma noite com música do Norte.

Você falou na vontade de reeditar os discos. Pretende levar adiante de alguma forma a proposta do livro?

O que já tenho planejado e, em parte, em execução, é ampliar o livro, não sei se com um segundo volume. A ideia é fazer uma quantidade grande de entrevistas, com os mestres da história e com os artistas atuais. Além disso, tem algumas situações que quer explorar mais. Como determinadas discografias em especial. Esclarecer algumas histórias. E, havendo condições econômicas, editar pelo menos uma coletânea com o mais legal dos dois gêneros.

Aproveite e ouça a playlist especial que fizemos com sons da Amazônia:

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