Emicida

Emicida faz show histórico em Salvador e coloca o rap em seu devido lugar

Em um daqueles shows marcantes e históricos, Emicida encara a dureza da realidade, sem esquecer de que não é apenas amargura que nos cerca.

Por Luciano Matos
Fotos por Rafael Souza

No show de lançamento de seu novo disco, “Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”, no último sábado (21 de novembro), no Trapiche Barnabé, em Salvador, o rapper paulista Emicida comprovou como estamos definitivamente em um novo momento da música brasileira. Não só o rap subiu para um novo patamar no Brasil, tornando-se um fenômeno pop de massa dos mais interessantes, deixando de ser uma música de gueto e se assumindo como a voz dos descontentes, mas também o próprio Emicida alcançou um nível de excelência, popularidade e importância que o coloca como um dos principais nomes do cenário atual. As mais de duas mil pessoas que lotaram o espaço atestaram isso ao vivo.

O rap não é nenhuma novidade, nem mesmo no Brasil, mas depois do fenômeno Racionais MCs, nomes como Emicida e Criolo o colocaram em uma outra esfera. Ainda é ritmo e poesia, beats e rimas, mas cada vez evolui mais e recebe temperos da musicalidade brasileira e de outras referências. Em seu último disco, Emicida ampliou um pouco mais isso. No show, com uma banda calibrada, com as bases de um DJ, mas também com muito groove, guitarras pesadas, foco nas percussões e graves altíssimos – samba, dubstep, rock, reggae, samba reggae e música africana de diversas matizes se intercalam e consolidam esse novo rap brasileiro e essa música brasileira totalmente contemporânea.

Focado em “Crianças, Quadris…”, tocado praticamente na íntegra, com exceção das vinhetas, mas com forte presença do álbum anterior, “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui” (2013) e com uma ou outra das mixtapes lançadas anteriormente, o show é um desfile de hits. Já no início uma sequência pauleira que daria o sinal do que vinha dali em diante. Peso no som e porrada no discurso, com todo mundo cantando junto, seja em ‘Oito’ com “Salve quebrada, século XXI chegamos, mas quem diria? Na era da informação a burrice dando as carta, a ignorância dando as carta”; em  ‘Boa Esperança’, com os versos arrebatadores “Cês diz que nosso pau é grande/ espera até ver nosso ódio”; ou em ‘Bang’, com “A dor dos judeus choca, a nossa gera piada”. Ninguém sai incólume.

emicida em salvador 3 foto Rafael Souza

Nem precisava. Boa parte do público já sabia o que sairia dali, conhecia as letras de cor e salteado e cantava todas numa comunhão pouco comum de se ver. Um público sintonizado com cada palavra dita ali, de maioria negra e jovem, com seus bonés, camisas e calças largas, ligados de alguma forma ao rap e também muitas mulheres, com seus cabelos afirmativos e turbantes. A comoção era generalizada e a emoção à flor da pele. Não era raro, por exemplo, ver gente cantando em meio a lágrimas. Assim, como em disco, ao vivo Emicida solta seu tom raivoso, bradando contra racismo, desigualdade e preconceitos. Sem cair no discurso de ódio, no entanto, acena para o outro, pedindo respeito para o diferente, chega a lembrar inclusive dos evangélicos em um momento. Fez isso sem abrir mão de soltar a voz contra os problemas contemporâneos e incômodos que pareciam colocar todos todos ali em uma mesma sintonia, em cima e em frente ao palco público.

Emicida set listO rapper soube equilibrar raiva com doçura, críticas com consciência, em uma apresentação intensa de pouco mais de uma hora e meia. A alternância de ênfase nos discursos era norteada pela músicas e pelas histórias que contava, indo do peso e urgência inicial, passando por momentos melancólicos e outros de puro lirismo. A sequência com ‘Mãe’, ‘Hoje Cedo’, ‘Madagascar’ e ‘Chapa’ comprovava isso. A seguinte com ‘Baiana’, ‘Passarinhos’ e ‘Mufete’ trazia sua vertente mais pop, leve e suingada, revelando muito da viagem à África e de uma forma até mais branda e esperançosa. Mostrava ali talvez a ambição de se tornar ainda maior, alcançando mais gente e dialogando fora do universo do rap. ‘Baiana’ foi um bom exemplo, apresentada como uma declaração de amor a Salvador, pode não ter o maior mérito poético, sendo até meio óbvia, mas faz todo sentido vê-la sendo cantada ali, um delicioso samba-reggae leve que poderia facilmente fazer sucesso no carnaval baiano.

As músicas próprias são intercaladas a todo tempo com referências musicais e literárias, que foram do samba tradicional ao funk carioca, com direito a poesia africana. O melhor é ver que tem todo sentido ele cantar “deixe me ir, preciso andar…”, de Cartola e ‘Eu Só Quero é Ser Feliz’, sucesso de Cidinho e Doca. Ou apresentar uma versão de ‘Haiti’ de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a poucos metros do Pelourinho e em tempos de mostras claras do permanente racismo brasileiro. Ou mesmo ‘Marinheiro Só’, totalmente sintonizada com a Salvador que o recebia, puxada a capela e terminando em samba. Mesmo a declamação de uma poesia fazia todo sentido, muito sentido. Ainda mais ‘Súplica’ da poetisa moçambicana Noémia de Sousa, que deixava o recado preciso: “Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música!”.

emicida em salvador 2 foto Rafael Souza

E se é o rap hoje quem mais se aproxima da realidade de uma maioria no país, Emicida é um potente porta-voz, sabendo usar a música e seus discursos para isso. Como diz em ‘Triunfo’, “Sou porta-voz de quem nunca foi ouvido/ Os esquecidos lembram de mim porque eu lembro dos esquecidos”, abrindo a sequência final que teria ainda ‘Noiz’, ‘Mandume’, ‘Ubuntu’ e ‘Casa’. Elas fecham o show, com um rap mais moderno, caprichado, agressivo, apontando para novas sonoridades e, claro, com todos cantando junto, tanto em ‘Ubuntu Fristaili’, com os versos certeiros “Axé pra quem é de axé, independente da sua fé, música é nossa religião”, quanto na bonita ‘Casa’, “O céu é meu pai / A terra, mamãe / E o mundo inteiro é tipo a minha casa”. Não poderia haver clima melhor.

O rapper ainda volta para o bis e manda as certeiras ‘Rinha’, uma das mais ovacionadas do show, ‘Levanta e Anda’, encarada quase como um hino e ‘Salve Black’, encerrando num clima de baile e alto astral. Em um show antológico, mostrou que o rap pode se manter potente, agressivo, até duro, mas ao mesmo tempo ser mais acessível, sem perder sua força. Se temos um mercado difuso, com um entretenimento barato e fácil ocupando os meios de comunicação, o rap vai conquistando espaço por outros caminhos, não precisando fingir um mundo formado apenas por baladas, pegação e amor romântico. Em sua música, Emicida encara a dureza da realidade, sem esquecer de que não é apenas amargura que nos cerca.

Ao vivo, Emicida demonstra pleno controle da importância e do poder que conquistou e de como pode usar suas rimas e potência no palco para mandar seu recado. Mesmo não cantando a música que o colocou numa polêmica com feministas, por exemplo, ele não fugiu do tema e trouxe a discussão tão atual das mulheres para dentro do show. Exaltou o respeito ao sexo feminino, pediu licença e parou a música para tratar diretamente com os ‘manos’, com quem ele mais sabe dialogar, falando sobre a dificuldade pela qual passam mulheres no dia-dia voltando tarde para casa e sendo desrespeitadas nas ruas. Lembrou da importância de Salvador como cidade negra, ressaltou a força da identidade negra. Pediu para o público não esquecer dos mortos do Cabula, exaltou o rap baiano, citando nomes de grupos locais. E, claro, lembrou da África e sua história: “tudo começou lá”.

Se em seus discos e músicas, Emicida é eficiente em falar diretamente com seu público, ao vivo ele cria uma conexão ainda mais próxima e orgânica. E vai além do diálogo com seu público mais direto, a população periférica moradora de qualquer metrópole brasileira. Fala da dura realidade deles, mas ultrapassa esse universo. Como um tradutor de uma época, a voz de um momento crucial da história brasileira, atinge com sua rajada de palavras e música quem estiver pela frente. Não é o único, mas em um momento em que poucos, mesmo entre os artistas mais jovens, conseguem se colocar de forma tão real e brutal sobre o que é a realidade a nossa volta, ele ganha uma importância ainda maior. E parece ter plena convicção disso.

Para quem gosta de música sem preconceitos.

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