Cena musical da Bahia bebe dos graves da Jamaica contemporânea

Uma geração de artistas que fundem reggae, dub, dancehall e outros ritmos da Jamaica aos sons da Bahia, com pegada explosiva, original e com muito grave.

Por Luciano Matos

Na Bahia existe uma expressão que diz que tudo acaba em reggae. Em Salvador, quando alguém quer combinar uma balada, ou festa, diz assim: “bó pro reggae?”. Pode nem parecer, mas o ritmo no estado é quase tão forte quanto qualquer outro que você pensar e está no DNA musical local. O baiano Edson Gomes, por exemplo, foi um precursor do reggae no Brasil e ainda é bastante reverenciado. Gilberto Gil levou o ritmo a um patamar ainda maior, regravando Bob Marley e fundindo o estilo caribenho à MPB. Mais tarde, os blocos afro misturaram os sons da Jamaica com as batidas ancestrais africanas e criaram o samba reggae. Essa influência continua e está cada vez mais em alta  na Bahia. Sonoridades contemporâneas como ragga, dancehall e dub vivem uma explosão nos trabalhos de diversos grupos, artistas e coletivos do estado.

Esses sons são fruto daquele tradicional reggae “roots”, conhecido e celebrado através da obra de Bob Marley, que ainda permanece forte na Jamaica, mas que ganhou novas roupagens, se atualizou, foi acelerado, modificado, mesclado a outras sonoridades e teve inserido novos elementos. Em sintonia com o que existe de mais contemporâneo na ilha caribenha, os artistas baianos também passaram a produzir um reggae mais modernizado e ligado a seus derivados mais atuais, se utilizando de eletrônica, beats, elementos do rap e outras sonoridades. São esses subgêneros do reggae que hoje mais influenciam novos artistas na Bahia, seja de forma mais direta e clara, ou misturado a outros elementos. Nomes como Ministéreo Público, Soraia Drummond, BaianaSystem, OQuadro, CDR Style, Dendê Dub, Os Nelsons e o projeto Bahia Bass são alguns deles.

Fenômeno atual em Salvador, lotando shows e sendo requisitado tanto pelo universo independente quanto pela indústria da Axé Music, o BaianaSystem faz uma mescla de ritmos e sonoridades tendo a guitarra baiana à frente e forte diálogo com os sons da Jamaica. “A gente experimenta muitos formatos nos encontros musicais, cada um ali tem uma personalidade muito forte no DNA musical e a música jamaicana é um dos elos”, conta Russo Passapusso, vocalista do grupo. “Buscamos alinhar essas influências nas músicas. Os tambores, os beats, as linhas de baixo, tudo isso vem com o aroma da sonoridade jamaicana na composição”.

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Russo Passapusso à frente do BaianaSystem.

Russo cita a cultura jamaicana como essencial em sua música e cita entre suas influências os discos de Lee “Scratch” Perry, King Tubby, Augustus Pablo, Mad Professor, Scientist, entre outros. “Gosto muito de um sub grave, gosto de ouvir musicas que tem essa frequência evidente. Ainda bem que está cada vez mais fácil de encontrar esse perfil nas músicas hoje em dia. “Fui educado assim, então independente do projeto sempre encontro pessoas com essas referências”, diz Russo, que além do BaianaSystem, fez parte do Bemba Trio e do Dubstéreo e mantém uma carreira solo paralela.

A cultura dos Sound systems – Russo começou a aparecer no cenário soteropolitano quando ainda integrava um dos primeiros grupos que dialogavam com as vertentes contemporâneas do reggae e de outros ritmos jamaicanos, o Ministéreo Público. Formado em 2005 por amigos que se juntaram e compraram uma aparelhagem de som para tocar nas ruas os discos e as músicas que não se ouviam nas rádios, o grupo é um típico sound system, nos moldes do que existem aos montes em Kignston. Do início até os dias atuais, é controlado por uma equipe de som com dois DJs (seletores), um técnico de som e um toaster (cantor e MC), hoje respectivamente Raiz Seletor e Pureza, Fael Primeiro e Regivan.

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A tradicional Quintas Dancehall promovida pelo Ministéreo Público.

“Na época nunca tínhamos escutado falar em sound systems em Salvador, porém percebemos que, nas lavagens de bairros e festas de ruas, sempre havia uma barraca com um som potente tocando quase sempre reggae”, conta DJ Raiz, um dos integrantes do grupo. Segundo ele, a ideia do Ministéreo surgiu naturalmente, sem maiores referências, mas depois de pesquisas, veio o caminho a seguir. “Deixou de ser um coletivo de DJs e passou a ser um sound system no modelo jamaicano. A partir daí direcionamos para o reggae music e suas vertentes”, explica Raiz. Ele, ao lado de Fael e Russo, formavam também o recém-finalizado Bemba Trio, outro projeto calcado nas sonoridades jamaicanas, que mesclava ragga e dub com ritmos periféricos, da Bahia, como samba reggae e samba chula, e de outras partes do Brasil e do mundo, como repente e miami bass (ou funk carioca, para os íntimos).

Desde 2008, o Ministéreo Público realiza o Quintas Dancehall, evento marcante na noite de Salvador, que consolidou os novos sons da Jamaica na cidade. Nestes sete anos, o projeto foi crescendo e se consolidando, atraindo artistas brasileiros e estrangeiros como convidados, entre eles Mad Professor (Reino Unido), Ranking Joe (Jamaica), BNegão (RJ), Dubversão Sistema de Som (SP), Buguinha Dub (PE), Confronto Sound System (DF), Geoffrey Chambers (Reino Unido), Eek-a-Mouse (Jamaica), Interferência Sistema de Som (RJ), Marc Dubterian (Alemanha). O coletivo acabou mobilizando e fortalecendo uma cena, revelando artistas, DJs e MCs e influenciando no surgimento de outros sound systems.

Para Raiz, houve uma mudança nas baladas (ou nos reggaes) de Salvador depois do Ministéreo. “Acredito que (nossa atuação) incentivou muitos outros DJs e produtores de eventos de pequeno e médio porte. Vejo que muitos se espelharam nele para criar seus eventos”, diz. Ele tem razão. É notável como a cena e o número de coletivos, sound systems, grupos e festas cresceram e se espalharam pela capital baiana e fora dela. Hoje o Ministéreo tem a companhia de nomes como CDR Style, em Salvador, Roça Sound, em Feira de Santana, e Complexo Ragga, de Vitória da Conquista.

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No sentido horário: Complexo Ragga, OQuadro, Roça Sound e Dendê Dub.

Trio elétricos, os maiores sistemas de som – Raiz tem razão ao evocar o som alto que enche praças, bares e barracas de praia soteropolitanos. Mais do que isso os próprios trios elétricos seriam uma espécie de sound systems ambulantes.

Bárbara Falcón, antropóloga, produtora cultural e autora de um livro sobre o reggae no Recôncavo Baiano, atesta a importância desse elo entre Jamaica e Bahia e a influência que vem da ilha no caribe para o Nordeste brasileiro. Para ela, o reggae é um dos pilares da música baiana e continua tendo tanta importância quanto na década de oitenta, quando os primeiros trabalhos influenciados pelo gênero começaram a surgir por aqui. “A Bahia foi pioneira nisso, aqui foi lançado o primeiro disco do gênero, inauguramos a prateleira do reggae nacional. Na atualidade, considero a música jamaicana e suas vertentes um dos pilares da nova música brasileira”, afirma.

Para Russo a ligação entre os sistemas de som da baianos e as vertentes da música jamaicana se manifesta de várias formas. “No canto de revolução, nos graves dos tambores do samba reggae, nas relações com a engenharia dos trios com suas aparelhagens e experimentações perambulantes… Na Bahia muita coisa me lembra Jamaica”.

A cantora Soraia Drummond faz coro. Ela, que é um dos nomes dessa nova cena baiana herdeira direta dos sons da Jamaica, ressalta a semelhança entre os trios elétricos e a cultura dos sound systems. Pra ela, a proposta de construir a própria estrutura para tocar na rua e arrastar as pessoas é igualzinho ao que rola na ilha caribenha. “Esse foi o meu ponto de partida na construção do meu trabalho, usando os elementos da cultura sound system, especialmente no quesito compactabilidade e potência. Um DJ, bases com groove pesado e um bom sistema de som garantem a festa”, resume.

Ela morou na terra de Bob Marley por dois anos, depois de conhecer e se apresentar com o cantor Gregory Isaacs em um festival em Salvador, em 2007. “Nesse período, fiz minhas primeiras gravações profissionais e algumas demos. Conheci produtores e escolhi alguns muito interessantes para trabalhar. Sly and Robbie e Dean Fraser foram os primeiros. Gregory era um superstar, então andava sempre entre os melhores”, conta. “O reggae prega a liberdade de expressão. Por isso ele sempre se renova, é sempre fresco, surpreendente em todas as suas existentes e futuras vertentes. É uma música viva e libertária, que respeita a individualidade de cada artista que a faz”.

Com uma proposta batizada de Drum Urban Bass (tambor urbano e grave), o Dendê Dub, criado em 2009, em Salvador, apenas recentemente consolidou sua formação e passou a apresentar o resultado de anos de experimentações com a raiz da cultura sound system e com as sonoridades baianas. Tendo à frente os cantores e compositores DumDum e Dom, o duo mesca influências jamaicanas, afro e baiana, num caldo que cabe candomblé, ritmos afros, ragga e dub step.

Já com uma uma música auto-intitulada Cangaço Hifi, o grupo Os Nelsons, de Paulo Afonso, segue nessa lógica de beber da música jamaicana, promovendo um diálogo das sonoridades mais contemporâneas, especialmente dub, ragga, dancehall, com o global ghettotech, ritmos tecnológicos das periferias do mundo, além de axé, swingueira e carimbó. Formado há mais de 10 anos em Ilhéus, sul da Bahia, o OQuadro é um dos destaques da atual cena do estado. Essencialmente rap, o grupo capta outras referências, do ijexá ao afrobeat, da black music ao rock, mas estão lá também o dub, o raggae e o reggae jamaicanos.

Movimento Bahia Bass – Esses artistas e grupos de certa forma fazem parte ou são provocados por um movimento forte que vem dando um norte nessa nova música baiana. É o chamado Bahia Bass, formado essencialmente por DJs e/ou produtores que começaram a disseminar música eletrônica com influência direta do dancehall, porém usando as células rítmicas de ritmos baianos, como samba reggae, ijêxá, pagode, arrocha, samba de roda e galope. E sempre valorizando bastante os graves.

São nomes como Mauro Telefunksoul, Àttooxxá, Som Peba, Lordbreu, Loro Voodoo, entre outros, atuantes em Salvador, mas também vindo de diversas cidades baianas, como Itapetinga, Juazeiro, Ihéus, Guanambi, Vitória da Conquista, Cachoeira e Paulo Afonso. O movimento que tem crescido bastante no estado, influenciado outros artistas e ganhado cada vez maiores proporções. “O BaianaSystem, por exemplo, antes era dub com guitarra baiana, hoje, depois do Bahia Bass, veio com mais peso e mais eletrônico”, diz Mauro Telefunksoul, DJ, produtor e um dos nomes à frente do movimento. Para ele, o Bahia Bass é o mais bem acabado resumo do que é o encontro entre a música do estado e a da Jamaica, bebendo na fonte nobre do reggae e de ritmos mais contemporâneos, como trap, moombahton, twerk e drumnbass.

“Nós usamos o grave do dub, as influências do samba reggae, as claves do pagode, que vêm do ragga, do reggaeton e do dancehall. É música para grandes soundsystems”, diz Mauro. Para ele, Bahia Bass é um movimento, “como foi a Tropicália e a Axé Music. Uma nova tendência baiana feita por DJs e produtores. Música eletrônica baiana, por que não?”.

Ouça coletânea da conexão Bahia-Jamaica contemporânea:

Jamaica no Brasil – Toda essa influência da música jamaicana, evidentemente, não é exercida apenas na Bahia. O reggae está presente de norte a sul do país, com cenas bastante fortes também no Maranhão e no Pará, até pelas fortes ligações com os ritmos latinos, além de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, entre outros. DJ Raiz lembra que as semelhanças com a ideia do sound system está disseminado pelo Brasil. “Não são só os sistemas baianos e os trios elétricos. Temos também as radiolas 100% reggae music, no Maranhão. No Rio de Janeiro teve o funk carioca com grandes paredes de sons. Sem falar nas enormes aparelhagens com o tecno-brega de Belém.”

Da mesma forma, a música da Jamaica mais atual, dub, dancehall, ragga à frente, influencia a nova geração brasileira. Nomes como Digital Dubs, no Rio de Janeiro; Jimmy Luv, em São Paulo; Buguinha dub, em Pernambuco; Cidade Verde Sounds, no Paraná; Deskareggae Sound System, em Minas Gerais; Furmiga Dub, na Paraíba; o coletivo Kizomba Groove, no Pará; e Fabiann Ifrikan, no Espírito Santo, estão entre os principais. O fato é que a Jamaica segue sendo uma forte fonte de criação, influenciando e levando nossa música para outros caminhos. Seja com Bob Marley, seja com seus herdeiros. Sob a benção dos deuses da música. E de Jah.

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