El Mapa de Todos

Música latino-americana e política deram tom no El Mapa de Todos

De todos os festivais realizados no Brasil, nenhum deve ter um apelo tão político quando o El Mapa de Todos, em Porto Alegre. Tanto pela sua proposta de promover a sonhada integração do Brasil com os países latino-americanos através da música, quanto por uma escolha de artistas famosos por suas posições políticas, o que acabou rendendo momentos marcantes em cima do palco.

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Na quinta edição do evento, realizada de 11 a 15 de novembro na capital gaúcha, pouco depois de uma das eleições mais acirradas dos últimos tempos no Brasil, parte dos artistas não se furtou em fazer discursos críticos durante seus shows. Do veterano uruguaio Daniel Viglietti aos pernambucanos do Mundo Livre S/A, as posturas políticas foram incisivas e, em alguns momentos, tão importantes quanto a própria música, com discursos veementes em prol da integração da América Latina, da luta de trabalhadores e minorias e de governos progressistas, e contra preconceitos, retrocessos, ditaduras e posições reacionárias. Não foi, porém, só papo, o festival também cumpriu muito bem seu papel de integrar artistas e produtores de várias partes do continente e, claro, apresentar novidades e revelar boas surpresas.

Com 18 artistas de países como Uruguai, Colômbia, Chile e Argentina, mas também de estados do Brasil, como Sergipe, Pernambuco, Santa Catarina, Goiás, Distrito Federal e São Paulo, além é claro de nomes do próprio Rio Grande do Sul, o el Mapa de Todos promoveu em seus cinco dias um bom panorama da produção brasileira atual, assim como apresentou um apanhado da música feita em países vizinhos. Desconhecidos da maioria, – nenhum dos latinos tem, por exemplo, seus discos lançados no Brasil -, as maiores revelações e surpresas do el Mapa de Todos vieram justamente dos países que os brasileiros pouco têm conhecimento de sua produção musical.

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Festival El Mapa de Todos no Theatro São Pedro. Foto: Paulo Capiotti

O El Mapa de Todos apostou este ano em diversificar ainda mais sua programação e levar os shows para novos espaços. Além do bar Opinião, principal casa de shows da cidade, o tradicional Theatro São Pedro e o pequeno Teatro Bruno Kiefer, que teve uma programação com entrada gratuita, receberam as apresentações da edição de 2015. Na abertura a música folclórica gaúcha de Luiz Marenco e o uruguaio Daniel Viglietti. A aposta serviu para levar um público mais velho, que nunca havia frequentado o festival, e que, após mostrar o orgulho gauchesco, se dividiu em reações de euforia, a maioria, e incômodo com o tom político de Viglietti.

Veterano nome da música uruguaia, do alto de seus 75, ele subiu ao palco sozinho com seu violão para desfilar canções próprias e de companheiros da América Latina, como Atahualpa Yupanqui e Violeta Parra, quase sempre com teor político. Os temas, introduzidos por comentários, giravam entre a união da América Latina e a mudança que alguns de seus países estão vivendo, os heróis que brigaram contra ditaduras, a luta de camponeses, o direito a terra e a desigualdade social. Num emocionante show que teve ainda referência a Lamarca e ao filme “Os Cangaceiros”, com direito a música de Luiz Gonzaga, as bandeiras do Uruguai e da Frente Ampla, a esquerda do país vizinho, davam o clima. A música e a política começam a dar o tom do festival a partir dali.

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Bomba Estéreo no Bar Opinião. Foto: Paulo Capiotti

Pela dimensão que o grupo tomou nos últimos anos, o Bomba Estéreo já era quase uma certeza de sucesso, mesmo antes de entrar no palco. Prova disso, é que os colombianos foram os que mais levaram público nos quatro dias de festival. E tinha razão quem foi assistir ao grupo no Opinião. Psicodelia, cumbia, ritmos latinos e eletrônica se entrelaçavam num som dançante e hipnotizante. Um encontro da África e da Amazônia, culturas indígenas e afros se mesclando, numa tradução moderna com matéria-prima colombiana. Sintetizadores, bases e efeitos, guitarras viajantes, baixo groovado e o baterista Kike Egurrola, que parecia uma máquina incansável de ritmos, tornando aquilo tudo ainda mais orgânico e vivo. No absoluto comando do palco, a agitada e poderosa vocalista Liliana Saumet, ligada no 220 voltz e fazendo o show parecer uma revolução psicodélica e estética. A banda foi apresentada no festival como a melhor da América Latina da atualidade. Se alguém lhe disser isso, não duvide. É verdade.

Se os colombianos eram uma certeza as surpresas vieram do Chile e da Argentina. O que aparentemente seria mais uma cantora comum, com canções simples, acompanhada de uma formação conservadora, falando de amor e banalidades da vida, se revelou um furacão no palco. A chilena Camila Moreno é um monstrinho. Irrequieta, comandava a banda, tocando vários instrumentos, ao mesmo tempo que corria de um lado a outro, cantava e soltava a voz em gritos agudos. Mesmo desconhecida de quase todo mundo, arrebatou o público. Foi outra com posicionamento político no palco, mas ganhou destaque por seu som que ia da doçura para acidez com rapidez e naturalidade impressionante. Com auxílio de uma ótima banda, trafegou por sons indie, folk com pegadas eletrônica, percussões e energia adolescente. Excelente surpresa.

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Bestia Bebé no Teatro Bruno Kiefer. Foto: Paulo Capiotti

Outra boa surpresa foram os argentinos do Bestia Bebé, que subiram no palco do Teatro Bruno Kiefer como se estivessem num ensaio. Despretensiosos, impressionaram com seu rock simples e agressivo, com guitarras distorcidas e uma sequência de boas canções. Com camisetas de filme e de desenho animado, tênis, bermudão, figurinhas de Maradona na guitarra e outras referências pop, o quarteto faz o rock que muito adolescente não deveria abrir mão quando monta uma banda, se importando menos com o figurino e mais com o a energia que um punhado de músicas pode ter.

Também de países vizinhos, passaram pelo palco do Opinião o colombiano Andrés Correa, um cantautor com uma música que remete a tradicional MPB, e os grupos uruguaios Molina Y Los Cósmicos e os veteranos Buenos Muchachos. O primeiro, vindo de uma pequena cidade de pouco mais de sete mil habitantes, próxima a fronteira com o Brasil, se mostrou ainda verde, com canções folk arrumadinhas, mas ainda carente de maior personalidade. No espírito do festival, clamaram pela integração entre os países da America Latina e convidaram músicos gaúchos para encerrar o show com uma versão de ‘Cowboy Fora da Lei’, de Raul Seixas.

O Buenos Muchachos teve a infelicidade de fechar uma noite depois do furacão do Bomba Estéreo, que teve que tocar cedo. Já tarde, tocaram para pouco mais de 50 pessoas, mas assim mesmo deixaram o recado com uma sonoridade que remetia aos sons indie dos anos 90. À base de um trabalho vigoroso das guitarras, com belas melodias e um vocalista de voz rouca cantando como se estivesse soltando todas as dores do mundo, a banda cria uma atmosfera densa e no calibre para quem gosta das velhas guitar bands.

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Coutto Orquestra no Bar Opinião. Foto: Paulo Capiotti

Presença brasileira

Entre os brasileiros, apesar do experiente Mundo Livre S/A ser uma das atrações principais do festival, quem roubou a cena foram bandas reveladas no último ano: Boogarins, Coutto Orchestra e Juvenil Silva. Quem abriu a primeiro noite no Opinião, no entanto foi o Skrotes, de Santa Catarina, que mostrou sua mistura de jazz, rock e experimentações sem guitarra, com apenas baixo, bateria e teclados.

Na mesma noite o Coutto Orquestra, de Sergipe, tinha um grande desafio: tocar depois do Bomba Estéreo e manter o público ligado. Desconhecidos e vindos de um estado que poucos em Porto Alegre tem referências da música feita por lá, conseguiram virar o jogo num incrível show em que misturam ritmos sem nenhum constrangimento e com muita personalidade. Quando o nordeste, com ritmos como marujada, maracatu, forró, com direito a “Pagode Russo” de Gonzaga no repertório, encontra o caribe e os balcãs, insere bases eletrônicas e um acordeon ensandecido. Anotem o nome, uma das boas descobertas de shows no ano.

O El Mapa de Todos foi marcado por esses nomes novos e ainda desconhecidos do cenário independente. O La Cumbia Negra, que mistura gaúchos e paulistas, fez um passeio instrumental por diversos ritmos latinos, com as guitarras de Gabriel Guedes (ex-Pata de Elefante) e Guri Assis Brasil (Pública) dando o tom. Adicionados de Miranda na percussão, o grupo tem uma proposta interessante, mas ainda precisar pegar a cancha de fazer esquentar o público.

Vindo de Pernambuco, Juvenil Silva revela um novo momento que vive a música no estado nordestino pós-mangue beat, finalmente mostrando várias caras novas. Juvenil é uma delas, talvez a de maior evidência no momento. Sem vergonha do sotaque e das influências, Juvenil faz rock com pegada nordestina e com muita personalidade. Foi o que mostrou em Porto Alegre, fazendo um daqueles shows para conquistar quem não conhecia, com canções que revelavam um modo especial de compor, tocar e cantar, às vezes até incomodando os desavisados. A eterna comparação que fazem com Alceu Valença e Raul Seixas é a mais fácil, mas não a mais precisa. Assim mesmo, é o melhor modo de tentar entender as canções simples, com uma verve nordestina que ele faz. Juvenil ainda recebeu no palco o também pernambucano Graxa e Wander wildner, que cantou um versão de ‘Eu Não Consigo Ser Alegre o Tempo Inteiro’.

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Juvenil SIlva no Bar Opinião. Foto: Paulo Capiotti

O Mundo Livre S/A era o maior nome nacional do festival. Com vários discos lançados, o grupo comemorava as duas décadas de seu primeiro trabalho, “Samba Esquema Noise”, e poderia fazer o show mais apoteótico do evento. Os fundamentos para isso estavam lá. O show giraria em torno da apresentação quase integral do álbum de estreia, completado por um giro por todos os outros lançados pelo grupo. Estavam lá os hits, ‘Livre Iniciativa’, ‘A Bola do Jogo’, ‘Bolo de Ameixa’, ‘Pastilhas Coloridas’, ‘Meu Esquema’, mas também músicas menos badaladas e menos inspiradas, como ‘Mexe Mexe’, ‘Inocência’, e mais recentes, como “Ela é Indie”.

Com uma formação que traz apenas Fred 04 à frente e Chef Tony, na bateria, da formação original, o Mundo Livre procurou, no entanto, apostar em versões com arranjos modificados, nem sempre com tanto sucesso. Chamaram mais atenção pela parte do repertório do início da carreira, com várias decepções, e pelo posicionamento crítico em suas letras e posturas no palco. Nesse caso com 04 afirmando “Eu sou bovino. Eu sou bolivariano”, ironizando certas afirmações que circularam pela mídia e pela internet nas últimas semanas. O show revelou que o grupo entrou num momento decisivo. Ou vai se transformar definitivamente numa banda cover de si mesmo, tentando criar versões para suas próprias músicas, ou se reinventa.

Se os principais nomes da música do Rio Grande do Sul ficaram de fora da edição deste ano do El Mapa de Todos, a aposta estava nos gaúchos do interior do estado.O último dia do festival no Teatro Bruno Kiefer reuniu a maioria deles. A ideia foi ótima, colocar bandas de rock para tocar de graça num auditório para não mais do que 300 pessoas, com um público mais jovem sentado e tendo que prestar atenção aos shows. Da cidade de Três Coroas vinha o jovem Jeff, que fazia um rock leve, arrumadinho e bem feito, com pegada pop mas sem nada especial. De Caxias do Sul, o power trio Bob Shut tem mais tempo de estrada, fazem um som mais calcado no indie, mas também pecam pela ausência de mais personalidade e punch.

Completava a a parte gaúcha da noite o Projeto Ccoma, também de Caxias. Aqui a história é outra. Formado por uma simples dupla, um trompetista e um produtor que faz as bases e a parte percussiva, o projeto fez um show muito interessante. A partir da música eletrônica decolam para várias direções, numa miscelânea que resultava em jazz, black music, brasilidades, cumbia e outros ritmos latinos. Não perderam a oportunidade de emendar um certeiro discurso contra o preconceito ao Nordeste. “Se a gente não viver num pais que tem Luiz Gonzaga, qual a graça?”, foi a deixa para emendar uma música de outro pernambucano: Di Melo. Em seguida ainda bradou do racismo que acusam ser forte em sua terra natal e convidou os senegaleses do grupo Tam Tam África, que vivem na cidade, para transformar de vez o espaço, até então indie, num terreiro moderno com percussão e bases eletrônicas se encontrando.

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Boogarins no Teatro Bruno Kiefer. Foto: Paulo Capiotti

De Brasília, Beto Só fez uma apresentação focada em músicas do cancioneiro indie nacional dos anos 2000, tocando obras de bandas como Violins, Stereoscope, Suíte Super Luxo, Phonopop, Superguidis (ovacionado na hora do anúncio), Los Porongas e Volver, esta com participação do gaúcho Frank Jorge.

Depois de rodar vários países em 2014 e se tornar uma das boas revelações do rock brasileiro, a goiana Boogarins mostrou porque vem colhendo tantos elogios mundo afora. Sintonizado com o momento de evidência do rock psicodélico no planeta, de bandas como Tame Impala e Temples, o grupo oferece algo a mais, com um tempero diferente de música brasileira. A sonoridade é como se Mutantes, Mopho e Jupiter Maçã e toda uma trajetória da música psicodélica brasileira se encontrassem num mesmo grupo. Com guitarras lisérgicas, uma cozinha groovada com bateria cheia de quebradas e um vocal sussurrado em falsete, encharcado referências da música brasileira, de Gal a Milton, passando por Ney Matogrosso. Um show de alto nível que demanda um mergulho na viagem sonora que o grupo propõe e no teatro ficou ainda mais favorável. Satisfação é ver uma garotada muito nova de menos de 20 anos curtindo aquilo ali como se fosse sua banda preferida.

Em sua quinta edição, o El Mapa de Todos se consolidou como um dos principais caminhos no Brasil para se conhecer a produção musical latino-americana e, ao tirar o foco no rock, se tornou também um espaço essencial dos novos nomes da música brasileira. “O festival cumpriu plenamente o principal objetivo: a internacionalização do evento, ou seja, sua inclusão no calendário latino-americano e mundial de festivais. Do ponto de vista musical, o festival avançou para superar o conceito de “festival de rock” tradicional, estabelecendo-se em novo patamar estético”, concorda Fernando Rosa, produtor do El Mapa.

Segundo ele, o festival acertou em se abrir para outros lugares e públicos. “Rompemos com a zona de conforto anterior, buscando encontrar novos públicos, de idades e origens distintas em outros espaços. Um novo tipo de público, digamos menos de bar, e mais de teatro, ou seja, mais interessado em conhecer os artistas, ouvir com atenção”, diz ele. Se a expansão é positiva para Porto Alegre, que o investimento na música latino-americana seja ampliado por outros festivais e eventos pelo Brasil e aguce a curiosidade do que vem sendo feito no países vizinhos. Qualidade, diversidade e sintonia com o que é feito aqui eles têm.

Veja os vídeos dos principais shows do El Mapa de Todos abaixo:

Bomba Estéreo

Couto Orchestra

Camila Moreno

Bestia Bebé

Projeto Ccoma e Tam-Tam Africa

Boogarins

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