Entrevista George Christian

Entrevista George Christian: “Me desiludi com a ideia de ser um artista popular”

Em entrevista, George Christian fala das dificuldades de ser músico em Salvador e por que partiu para fazer música experimental.

* Texto e entrevista por João Paulo Barreto

Apostando em uma proposta musical única na Bahia, a da música experimental de livre improvisação, o violonista George Christian trilha esse caminho sem abrir concessões. Segue fiel a um estilo que o conquistou há mais de 10 anos e o levou à gravação de 15 discos autorais que contam com a participação de vários mestres do estilo em todo mundo.

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Na livre-improvisação musical, movimento que possui talentos expoentes em diversos países, o multi-instrumentista George Christian define um norte: “A essência de todo e qualquer trabalho composicional meu se encontra na improvisação. Tenho uma perspectiva de improvisação que, na realidade, é o de uma elaboração de composição em tempo real”, explica.

Lançando em outubro 2017 um álbum voltado para piano, o “AntiClimaxTransMorte” (votado no Prêmio Bravo entre os melhores discos de música erudita), e em dezembro do mesmo ano a parte dois da trilogia “Exílios”, o inquieto guitarrista falou acerca de suas influências, modos de composição e a total desilusão com qualquer intenção de fama com o estilo de música que faz.

“Eu me desiludi com a ideia de ser um artista popular. Já sonhei muito com isso, hoje não mais. Contento-me em ser um aventureiro. Ainda não tenho na música uma visibilidade a nível profissional. Procuro, antes de tudo, o respeito e a sobrevivência em meio a um cenário muito adverso na cidade em que ainda resido, Salvador”, salienta o músico.

Com os pés no chão, mas fiel a sua própria música, George Christian segue criando algo que se diferencia de muita coisa que vemos surgir na Bahia, num âmbito regional, e no Brasil, como um todo. E é justamente disso que precisamos. Fala mais, George!

Como surgiu o conceito da trilogia musical “Exílios”?
A trilogia “Exílios” começou em agosto de 2015. A temática do aventurar-se em novos territórios nunca me foi estranha e tem permeado parte do meu trabalho desde antes de os “Exílios” existirem, e me é cara. Mas o evento que realmente me foi propulsor para essa trilogia foi a separação da banda que montei em novembro de 2012, Vento Bravo, que tinha João Carlos Mascarenhas (ex-Fracassados do Underground) no baixo e Tácio Torres na bateria (hoje na Muddy Town). Eu realmente adorei ter trabalhado com eles, apesar das dificuldades pessoais e financeiras que tivemos para tentar levar à frente o projeto. Vento Bravo só tocou ao vivo uma vez em janeiro de 2014, e foi na ocasião do show de lançamento de meu álbum, “Aos Rios Urbanos”, na livraria Porto dos Livros (localizada na boêmia região do Porto da Barra, em Salvador), que foi também o meu primeiro show como músico. Um show quase desastroso (risos). Na época, a banda existia com outro nome, SailorsansB. Quisemos nos fortalecer como trio, mas a música sempre pedia mais instrumentação, e nunca encontrávamos gente disposta a somar. Éramos três cabeças muito distintas, além do mais, apesar dos gostos musicais em comum. Quase tivemos a chance de gravar um EP com Heitor Dantas (arranjador, produtor e guitarrista baiano), mas nossas dificuldades aumentaram, e decidi parar com o projeto. Ainda tenho gravações de ensaios e demos para o EP aqui, e pretendo dar um trato nisso tudo. Mas percebi que estava farto de lidar rotineiramente com as mesmas figuras com uma banda fixa por quase três anos. Também percebi que poderia continuar me virando, como sempre me virei, no âmbito virtual mesmo, convidando como colaboradores os músicos que eu mais admirava e lidava localmente, daqui de Salvador ou residentes de outras cidades, ou de fora do Brasil. Não deixei de tentar convidar os amigos da Vento Bravo, mas eles relutaram demais e acabaram não participando. As gravações dos violões para “Exílios” começaram quando a banda estava em seu momento de quase encerramento.

Trata-se de um trabalho realizado com um tema bastante profundo, que remete muito ao existencialismo. Era essa sua intenção? Quais as sua influências neste projeto?
Tive como inspiração a saudável incoerência do primeiro álbum de Syd Barrett, “The Madcap Laughs”, que tem bandas ou formações instrumentais diferentes a cada faixa. “Exílios” foi feito com uma proposta agregadora; eu sou um músico que não me afastei de todo do território da canção, apesar de trabalhar mais vigorosamente com música instrumental atualmente. Quis reunir minhas melhores canções, que não cheguei a trabalhar com a minha antiga banda, e dar a elas um escopo ainda maior com peças instrumentais. Tem a proposta ambiciosa de ser uma trilogia, e originalmente quis como álbum triplo. Mas como isso não seria possível para mim financeiramente por meios físicos, acabei preferindo a ideia de lançar cada parte em separado, por selos diferentes. E em cada parte quis abordar três aspectos distintos do exílio: a perda da inocência, o afastamento afetivo e o enfrentamento com as adversas realidades tanto interiores quanto exteriores. Tudo isso associado à busca pelo amadurecimento e/ou autoconhecimento. Trata-se de um álbum de temática existencialista, sim. E foi a minha forma de superar a frustração de não ter conseguido avançar em voos mais altos com uma banda que durou quase três anos de muita atividade e pouco resultado.

E para “AntiClimaxTransMorte”, como se deu esse processo de gravar um disco como pianista? E o título? De onde vem?
“AntiClimaxTransMorte” tem uma história um tanto distinta, na realidade. Eu o gravei após ter feito grande parte das gravações e mixagens para “Exílios” em junho do ano passado. Tenho um amigo no Rio Grande do Sul que é o Diego Dias (que, junto com Gustavo Bode, gerencia o selo dedicado à música de livre improvisação Mansarda Records). Foi ele que me perguntou se eu tocava piano. Respondi que sim, mas que não era um virtuoso, não é o meu primeiro instrumento. Mesmo assim, foi ele que me ofereceu essa proposta tentadora de gravar um longo improviso ao piano e lançá-lo pelo selo dele. Quando Diego fala no texto introdutório sobre o álbum, “Convidei George nas entressafras”, ele não está mentindo, pois o meu foco na época ainda eram os “Exílios”. Mesmo assim, cedi e gravei quase 40 min de puro improviso livre ao piano, aproveitando a ausência de minha professora Alla Dadaian num piano Essex da sala 208 na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. O título “AntiClimaxTransMorte” me veio quase que de imediato, depois da realização da gravação. Tem essa ideia de enganar a tarde morta, representada por um compromisso adiado, e um desejo de superação.

Como você descreveria o processo de gravação deles e o que os diferencia de seus outros trabalhos no passado?
Ambos os projetos, acredite ou não, tiveram em comum o fato de terem sido gravados com o meu celular Samsung Galaxy IV. No caso dos “Exílios”, somente os violões na maioria de seu repertório, embora houvesse outros microfones e outros meios de gravação, foram gravados no meu quarto. Já o “AntiClimaxTransMorte” não foi em minha casa, pois não tenho piano, claro, mas, sim, na Escola de Música (EMUS-UFBA). O celular foi colocado logo acima de sua caixa de ressonância. Percebi que o celular possuía um microfone compressor capaz de gravar em mono e na amostragem de 44.1Hz, o que resulta numa fidelidade tão boa quanto a de ouvir um CD, especialmente se souber como tratar o áudio a posteriori, nas mixagens e masterizações. No entanto, tem suas claras desvantagens. Por exemplo, o fato de captar mais frequências médio-agudas. Um problema não tão diferente em relação ao que lidei nos microfones de computador com os quais gravei no passado. Mas gravar com o celular tem a bela vantagem de não haver grandes possibilidades de clipagem. E é um microfone compressor, o que confere uma boa nitidez. Quanto à realização, a trilogia “Exílios” se diferencia muito pelo fato de ter a maior quantidade de músicos convidados envolvidos em um projeto meu, das mais variadas partes do globo. Há antigos parceiros como o japonês Hiroshi Mehata, o português Paulo Chagas, como também gente que colaborou pela primeira vez, como o violoncelista Nilton Belmonte ou o percussionista Lucas de Gal, residentes em Salvador, ou Rômulo Alexis (do Rádio Diáspora), residente em São Paulo, ou Jeff Gburek (norte-americano atualmente residente na Irlanda), entre outros. Em sua maioria, atuaram como co-arranjadores, mas eu escrevi alguns arranjos para violoncelo para o Nilton e cítara para o Lucas Jagersbacher, como também repassei grande parte de minhas ideias para a bateria nas faixas em que o Igor Galindo tocou. E também toco uma série de outros instrumentos. Além do violão de aço, toco guitarra, baixo, piano, flauta e faço as trilhas eletroacústicas também. É a primeira vez que faço tudo isso num álbum. E tive uma imensa ajuda de um amigo de longa data, o engenheiro de som Breno Souza Ramos – antigo colega de curso pela UFBA, quando me graduei em Letras, e que me foi lembrado por João, meu antigo parceiro na banda Vento Bravo. Ele também foi um dos músicos participantes. Foi com Breno que tive a chance de gravar outros instrumentos que não os meus seja na residência dele ou na EMUS, onde ele também gravou alguns músicos convidados, seja com microfones compressores ou dinâmicos, seja usando mesa de som Roland em quatro canais e/ou câmera digital de alta resolução, seja gravando num tablet usando o Guitar Pro como ferramenta. Breno realmente domina os meios tecnológicos de uma gravação de baixo custo. “Exílios”, enfim, é um trabalho sem residência fixa, de nomadismos sonoros, sem ser gravado totalmente em estúdio. Sua qualidade sonora é um mundo à parte. Já “AntiClimaxTransMorte” é o meu primeiro álbum autoral totalmente voltado ao piano, apesar de não ter minhas primeiras gravações para o instrumento. E é nisso que reside sua grande diferença em relação a todos os meus álbuns anteriores. No fundo, ele faz parte de um continuum de álbuns instrumentais que eu tenho e que tiveram o meu violão como base. É um álbum intimista, não precisei de auxílio de ninguém para gravá-lo. O silêncio da sala em que estive foi o que era necessário para produzi-lo.

Você descreve a música de “Exílios 1” como “peças instrumentais que convivem com (anti)canções em nome da diversidade de rotas de percurso.” Essa é, para mim, uma ótima definição da música de livre improvisação. Você pode falar um pouco desse processo de criação e como isso te afeta como compositor?
Meu trabalho encontra na improvisação sua razão de ser. A essência de todo e qualquer trabalho composicional meu se encontra na improvisação. Tenho uma perspectiva de improvisação que, na realidade, é o de uma elaboração de composição em tempo real. São raras as ocasiões em que uma ideia melódica me vem sem tê-la criado numa sessão de improvisação descompromissada. A partir do momento em que tive conhecimento do fato de que os músicos clássicos indianos, além dos músicos de jazz, trabalhavam extensa e prioritariamente com a improvisação, passei a levar as minhas improvisações mais a sério. Até porque já estava meio enfadado de escrever canções. As canções que você ouve nos “Exílios” são, em sua maioria, antigas. A partir de 2008, parei de escrever canções, mas “Lançado ao Uno” é a única exceção, por ter tido sua parte musical escrita em 2015, durante os “Exílios”. Apesar de atualmente fazer composição pela UFBA, a partitura nunca foi o meu meio principal de registro do meu trabalho. Eu a uso, sim, mas não sistemática e rotineiramente. Prefiro gravação. Tenho gravado tanto improvisos irrepetíveis, livres, como também ideias composicionais advindas de improvisações ou composições prontas. Posso dizer seguramente que sou um improvisador por natureza. Orlando Pinho, amigo meu, parafraseou a autodefinição de (Walter) Smetak (músico, pesquisador e professor suíço radicado na Bahia e falecido em 1984) e me apresentou como “decompositor contemporâneo” num dos eventos no Dominicaos (popular encontro itinerante multimidiatico acontecia em Salvador). Confesso que me identifico com isso… (risos)

“Velvet Underground, Sonic Youth, Keiji Haino ou Les Rallizes Dénudés são minhas principais referências”

Sem querer criar rótulos, mas inevitavelmente seguindo por esse caminho, você se consideraria um artista de folk progressivo?
Sim. Minha execução no violão de aço, como também boa parte de minhas referências musicais, partem essencialmente de meu aprendizado com a música folclórica, seja brasileira ou estrangeira. Costumo aliar isso ao conhecimento composicional que adquiri da música clássica, o que dá essa característica “progressiva” à minha sonoridade. Não exclusivamente me detenho no folk-progressivo, mas isto é pura verdade nos “Exílios”. É um álbum de folk-progressivo tanto cantado quanto instrumental, aliado à música clássica contemporânea, à eletroacústica experimental e ao art-rock. E o folk-progressivo tem sido uma tônica em meu trabalho, mas tenho meu lado mais extremo, noise também (Velvet Underground, Sonic Youth, Keiji Haino ou Les Rallizes Dénudés são minhas principais referências). Vim do rock-progressivo, na realidade, e foi através dele que me descobri na música clássica desde a minha adolescência. Minha primeira paixão foi o Yes na sua fase com a formação clássica, progressiva. Foi com Stevie Howe que descobri que o violão era o meu instrumento, em “Mood for a Day”. Foi o lado folk do Led Zeppelin, ou do Pink Floyd ou até de Neil Young que me fez descobrir o baroque folk de Bert Jansch ou Davy Graham e a posterior cena folk-rock com uma perspectiva mais progressiva, como Pentangle, Fairport Convention, Comus, The Incredible String Band… Enfim, como nas minhas pesquisas uma coisa leva à outra, descobri outros “violeiros de aço” gringos: a poética introversão de Nick Drake, ou o “american primitive” John Fahey. Fahey, em particular, foi a minha influência fundamental, com ele aprendi técnicas de dedilhado ragtime e bluegrass, como também afinações alternativas.

E no Brasil, quais artistas você citaria como influentes para seu trabalho?
Sempre apreciei o que há de folk em bandas e artistas como Mutantes, Novos Baianos, Secos & Molhados, Egberto Gismonti, as harmonias do Clube da Esquina (em especial, o lindo álbum de 1972), a psicodelia nordestina de Lula Côrtes & Lailson, Flaviola e o Bando do Sol, Zé Ramalho, Alceu Valença. Os violonistas brasileiros predominantemente preferem cordas de nylon, não de aço como eu. Por isso, encontrei afinidades em André Geraissati ou em Stênio Mendes, até Duofel, apesar de meus antecessores mais remotos no violão de aço aqui no Brasil serem Américo “Canhoto” Jacomino ou Dilermando Reis. E o trovador com qual sinto mais afinidade e tenho proximidade geográfica é o Elomar, que não toca em cordas de aço… (risos). A música do Quinteto Armorial também é algo que aprecio. A música nordestina me é de importância essencial… Indo para outras partes do mundo, aprendi algo ouvindo também Erkin Koray, da Turquia, ou o Masters Musicians of Jajouka, do Marrocos, ou Hamza El-Din, do Mali. Com os “Exílios”, procurei canalizar tudo que aprendi dentro de uma visão pessoal, inescapavelmente folk-progressiva.

Sendo um multi-instrumentista, como você equilibra suas criações entre os trabalhos voltados para piano, guitarra, violão ou outras ferramentas?
Bem, fundamentalmente sou um violonista – ou guitarrista, a depender do referencial cultural… (risos). Muito do que criei foi ao violão e para o violão. Estou ainda me descobrindo como compositor de piano. “AntiClimaxTransMorte” trata dessa autodescoberta de uma voz pianística, apesar de não ter sido minha primeira composição ou improvisação para o piano. Outros instrumentos são, para mim, veículos de expressão nos quais posso expandir a minha voz composicional ou transmutá-la em outras formas.

“É uma rebelião necessária. A livre-improvisação é uma experiência libertadora, anárquica no sentido real da palavra, um lugar musical de uma utopia possível. Me identifico profundamente com isso.”

Há na sua música elementos que relacionamos com a música indiana, principalmente em nomes como Ravi Shankar e Ram Narayam. Em uma de nossas conversas, você comentou acerca do psicodelismo que encontramos na música oriunda de lá. Como isso te influencia em suas composições?
No fundo, o que se designa como “psicodelismo” permeia muito do meu trabalho. Passei a descobrir que foi o contato ocidental com a música indiana que acabou resultando no psicodelismo na música, com o plus das drogas alucinógenas, das vanguardas artísticas e descobertas tecnológicas, especialmente na década de 1960. E isso não afetou somente o rock, mas toda uma cultura underground e, até, gente de dentro da música erudita, como os compositores Karlheinz Stockhausen, Per Nörgard e La Monte Young. Por exemplo, uma das bandas que mais admiro, o Velvet Underground, teve como integrante o John Cale, que era um violista clássico que procurou La Monte Young para forjar sua visão de minimalismo. Por sua vez, La Monte Young era um profundo interessado em raga, foi aluno do Pandit Pran Nath, cantor indiano especialista em Kirana Gharana, uma escola de raga. Sou um inconstante praticante de yoga. Já fui mais disciplinado. Mas foi devido à prática de yoga, que me foi recomendada por um amigo psicólogo, que passei por um sério período de autodescoberta e percebi na música uma missão minha, uma vocação. A yoga foi tão decisivamente importante que a sua prática pôde fazer com que me conectasse mais comigo mesmo e desenvolvesse a minha voz, minha personalidade. A partir da yoga, passei a me concentrar mais em música instrumental. E foi durante esse período que passei a conhecer dois artistas que me deram um norte para um direcionamento musical: John Fahey e Ravi Shankar. Eles são as principais referências no blues e no raga em minha música instrumental. Costumo dizer que faço blues-raga algumas vezes por isso. E tive uma revelação com a introspecção proporcionada com a yoga: não é preciso nenhum alucinógeno para trazer psicodelismo na música. Como disse certa vez o guitarrista do Ash Ra Tempel, Manuel Gottsching, “music is the drug”.

Países como Japão e Alemanha possuem diversos movimentos musicais voltados para a música de livre improvisação. Como você diferenciaria as experiências sonoras criadas nos dois? Ainda: em como base cultural das duas potências influencia os músicos oriundos de lá?
Diferencio da seguinte maneira: por não ter amarras quanto a uma tradição clássico/europeia, mas sim com a tradição zen-budista, o cenário japonês é bem menos austero se comparado com o alemão. Vale notar que há músicos ou grupos que trabalham com a livre improvisação em diversos outros lugares na Europa desde meados dos anos 1960, começando na Inglaterra com o AMM ou o Spontaneous Music Ensemble, na Itália com o Gruppo di Improvvizatione Nuova Consonanza ou o Música Elettronica Viva, que é, na realidade, um grupo intercontinental! Por outro ângulo, em comum, a livre-improvisação alemã e a japonesa tiveram como grande força motriz o processo traumático do derrotismo do pós-guerra, entre agitações políticas bastante divisivas que acabaram com todo e qualquer idealismo. Talvez seja o que faz com que eles se destaquem marcadamente; é impossível ficar indiferente à agressividade de um Peter Brötzmann ou o approach incrivelmente plural de um Han Bennink; no lado japonês, o piano literalmente incendiário do Yosuke Yamashita, a incrível força respiratória aliada a um melodismo melancólico de Kaoru Abe, o inventivo guitarrista que veio do cool-jazz para chegar o puro noise-experimental que é o Masayuki Takanayagi. Foi através dos conceitos dele de “gradually projection” e de “mass projection” que me inspirei a fazer, com Hiroshi Mehata, do Japão, e Paulo Chagas, de Portugal, “Love without Wings”, originalmente lançado pela Spectropol Records, em 2014 – álbum que terá uma reedição especial em K7 a ser lançada pela Mahorka Records ainda em 2018. E o que acho particularmente legal nos cenários alemão e japonês é a relação com o rock experimental. Do lado alemão, você teve o Krautrock de bandas como Amon Düül, Can, Faust, Ash Ra Tempel, Kraftwerk nos anos 1970, chegando ao industrial do Einsturzende Neubauten, Casper Brötzmann Massaker; e do lado japonês, o desenvolvimento do psicodelismo desde os Group Sounds, passando por The Jacks, LesRallizesDénudes, ou grupos misteriosos como BrastBurn/KarunaKhyal… até a chegar à ultrapsicodelia do Fushitsusha, banda espetacular de Keiji Haino, Acid Mothers Temple, High Rise, Kousokuya e noisemakers como Merzbow, Hijokaidan, Incapacitants, The Gerogerigegege… em maior ou menor medida, esses músicos são participantes de uma cena mundial da livre-improvisação ou estão colaborando entre si.

A livre improvisação é um desafio imenso para músicos. Em um documentário produzido pelo jornal inglês The Guardian, uma pergunta que é lançada reside na possibilidade desse estilo ser o mais marcante patamar em termos de música underground, isso pelo fato de que as regras são feitas pelo próprio músico e a máxima ainda está no “não há regras”. Você concorda?
Em parte, sim. Os músicos praticantes desse estilo são oriundos tanto da tradição da música clássica, como também da popular – do jazz, sobretudo, além do rock, da música eletrônica. Mas todos têm em comum o fato de não se acomodarem em nenhum desses enquadramentos. É uma rebelião necessária. A livre-improvisação é uma experiência libertadora, anárquica no sentido real da palavra, um lugar musical de uma utopia possível. Me identifico profundamente com isso. Sou alguém que “falhou” tanto em ser músico popular, como também como músico clássico. Sou bem-sucedido em ser George Christian graças à livre-improvisação também, apesar de ainda haver em mim o compositor que procura criar peças com cara e presença para uma memória coletiva. A livre-improvisação nem sempre quer apelar para o jogo mnemônico do motivo e procura válvulas de escape às armadilhas da repetição em nome de uma aventura sonora mais liberadora. Ou seja, no lugar da pura e simples repetição, há a variação como recurso primordial. Mas, no fundo, no fundo, há uma regrinha sim: a de aprender a lidar com os espaços sonoros com os quais está interagindo. Saber intuitivamente a estrutura profunda. Saber dialogar, com silêncio ou com som. Isso aprendi com o amigo, também livre-improvisador, Edbrass Brasil. Também é saber explorar o seu arsenal sonoro quando preciso e necessário. Ter uma visão global sobre o fenômeno sonoro e saber responder à altura.

Neste mesmo documentário, um dos músicos, Eddie Prévost, fala acerca de que a interpretação do que está sendo escutado complementa o sentido do que é executado. Ou seja, a música depende quase que inteiramente da resposta da audiência. Você costuma levar sua música para esse mesmo caminho de interação com o público?
Sim e não. Sou introverso e tímido, mas bastante intuitivo. Procuro meditar enquanto toco, apesar de bater por vezes aquela ansiedade. Mas prefiro ter uma audição mais global. Se alguém resolve bater algo no liquidificador num bar logo ao lado, eu incorporo isso respondendo a essa sonoridade em minha guitarra. Se alguém me fala “toca Raul”, respondo “Raul não pode aparecer no momento, mas serve um parente dele?” (Risos) Se a sala está abafada, respondo com uma sonoridade que expresse isso. Se algumas cordas de meu violão partirem e eu não tiver como substituir, apelo para qualquer outro instrumento ao redor. Isso são relatos de experiências reais que tive. Sim, nesse ponto, concordo com o baterista do AMM, Eddie Prévost. Não há ostentação de técnica, mas pura vontade de integrar toda a paisagem sonora como experiência. Isso deriva de lições que John Cage nos trouxe. Se a música é organização dos sons em movimento, por que não integrar a paisagem que sempre flui ou a própria audiência, que, por vezes, nem se quer como uma audiência? Tenho um álbum solo inteiramente instrumental totalmente composto em tempo real (por vezes, livremente improvisado), gravado em casa ou na Escola de Música da UFBA, cujas interferências de acontecimentos ao acaso não deixaram de ser registradas. Chama-se “Aos Pássaros Outonais”, e é outro álbum que estou programando para lançar neste ano.

Um dos pontos que mais me chamaram a atenção nesse trabalho do jornal The Guardian reside na ideia de que, diferente do que muitos podem pensar, esse tipo de expressão musical não é elitista. Pelo contrário. Representa uma rejeição do que é oriunda da classe elitista. Você pode falar um pouco dessa relação da origem da livre improvisação e como esse tipo de expressão chegou a você?
Com certeza não há elitismo na livre-improvisação. É um campo aberto especialmente para quem tem vontade para aventuras sonoras, de modo a abranger o vocabulário usual de um determinado instrumento. Esse tipo de expressão musical pode gerar incompreensão em parte de uma audiência que tem expectativas comerciais e convencionais, pouco ou nada afeita a expressões sonoras alternativas. Vejo como principal meta da livre-improvisação libertar o ouvinte da percepção como comércio, como algo a ser enquadrado dentro de parâmetros de compra e venda, ao abraçar uma perspectiva de pura pesquisa sonora, descobertas tímbricas. Ela é muito mais antiga do que se imagina; desde quando o mundo é mundo, a improvisação sempre existiu na música. Desde quando houve a pura necessidade de comunicação através dos sons musicais, independentemente do background, a livre-improvisação sempre existiu. Eu tenho um lado musicólogo e pesquisador. Foi pela internet que, em 2008, me dei conta da existência de um grupo que trabalhava com a livre-improvisação e que, de alguma maneira, tem uma conexão com uma banda favorita minha, o Pink Floyd. Trata-se de um grupo experimental chamado AMM. Essa sigla ainda tem um significado misterioso; mas é um ensemble inglês que surgiu em meados da década de 1960, que originalmente incluía o já citado baterista Eddie Prévost (membro original que está no grupo até hoje), o saxofonista Lou Gare, o pianista e violoncelista Cornelius Cardew e o guitarrista Keith Rowe. Rowe, em particular, é um sujeito que praticamente abandonou as convencionalidades do vocabulário da guitarra – tanto até que ele toca a guitarra sobre uma mesa, tal qual um cirurgião – e passou a trabalhar única e exclusivamente com técnicas estendidas de emissão tímbrica. Ele é um verdadeiro cientista da guitarra, sujeito que influenciou gente como Fred Frith, Masayuki Takanayagi, Jeff Gburek e, até, Syd Barrett, quando ainda no Pink Floyd. Nessa mesma época, 2008, conheci também outros musicistas livre-improvisadores, mas dediquei minha atenção especialmente a músicos que lidavam com o meu instrumento, em particular. A saber, Derek Bailey (um guitarrista que criou um vocabulário de execução absolutamente original), Sonny Sharrock (minha execução ao slide tem referência direta dele); Keiji Haino (uma figura mística ímpar, além de ser um guitarrista soberbamente enérgico), os já citados Masayuki Takanayagi e Fred Frith (Henry Cow, Massacre). Mas não pense que não houve o lugar do Brasil nessa história… eu tenho a teoria de que o suíço-brasileiro Walter Smetak foi um pioneiro indireto da música de livre-improvisação por aqui. Claro, ele tinha uma formação erudita, era violoncelista… mas com suas plásticas sonoras e sua busca eubiótica por novas fronteiras de pensamento sonoro, creio que ele fomentou uma nova cultura de experimentação e improvisação por aqui. De certo modo, me sinto continuador de Smetak; até incorporei algumas técnicas estendidas que ele repassou a seus discípulos, como a ideia de afinação do violão de microtom ou o uso de uma corda de violão como arco.

Você já conta com uma discografia autoral de 15 álbuns, sem contar os trabalhos em que participou como convidado ou compilações. Entretanto, sua longevidade como artista fonográfico contrasta com sua pouca popularidade ou como performer ao vivo. Por que isso acontece?
Porque me desiludi com a ideia de ser um artista popular. Já sonhei muito com isso, hoje não mais. Contento-me em ser um aventureiro. Ainda não tenho na música uma visibilidade a nível profissional. Procuro, antes de tudo, o respeito e a sobrevivência em meio a um cenário muito adverso na cidade em que ainda resido, Salvador. Quando comecei a gravar meu material em 2008, adquirindo uma rotina com isso, acabei descobrindo a internet como um meio formidável de aparecer no mundo sob uma teia de invisibilidade em fótons e elétrons… Lancei meu primeiro álbum por um selo francês dedicado à música experimental e de improvisação, que foi a Stomoxine Records, “Às Vezes Sempre”. Confesso que não sabia de meios maiores de divulgação que não o virtual, através das redes sociais; deixei que os selos em que estive cuidassem de difundir a palavra. Mas percebi que há selos que só se contentam em hospedar e divulgar um pouco e há outros que têm uma consciência muito bacana de repasse da divulgação e dão plataforma nisso. Consegui respeito por parte de gente da classe artística de minha cidade, sim, mas tive de esperar até 2013, quando participei dos eventos “Jam Smetak” e “Smetak Imprevisto”, para conhecer músicos com os quais realmente me sinto integrado a uma cena informal de música experimental por aqui – com músicos como Heitor Dantas, Edbrass Brasil, Orlando Pinho, Mateus Dantas, Tuzé de Abreu, o pessoal das bandas Se Senão, Suzana’s Bauten. E o reconhecimento foi gradativo, tem-me sido de real importância para mim – já toquei em lugares como a reitoria da UFBA, o teatro do Goethe-Institut, teatro Gregório de Mattos. O lugar mais longínquo em que toquei até agora foi em São Paulo, no Estúdio Fita-Crepe, tocando com o Oco do Átomo (Heitor e Orlando) e com o Rádio Diáspora (Rômulo Alexis e Wagner Ramos) como convidado pela Mostra de Música Experimental da Bahia. Foi um marco em minha carreira este evento.

Você já tocou ou colaborou com uma diversidade de artistas tanto locais quanto de outros países, sem precisar sair de sua casa. Poderia mencionar alguns trabalhos que poderia indicar para conhecê-los?
Seguramente, posso indicar toda a trilogia “Exílios” (ouça os volumes “1” e “2“) que tem colaborações de músicos tanto daqui de Salvador, quanto de outras partes no mundo. Mas, no que tange a isso, “Exílios” têm seus antecessores. Em maior ou menor grau, todos os álbuns anteriores incluíram algum convidado participando de alguma faixa. Mas indico dois importantes álbuns cuja colaboração foi total, que foram com o japonês Hiroshi Mehata (Mehata Sentimental Legend) que lancei pela Spectropol Records: “La Géographiesans Regret” (2012) e “Love without Wings” (2014, também feito com Paulo Chagas, creditado a Christian + Mehata + Chagas). Há uma coletânea retrospectiva chamada “Afluentes” (2013) que reúne uma diversidade de artistas com quem trabalhei, como Franzé Matos, Owl Dreams, Tod Shelton, Kawol Samarkand. E há também o meu primeiro álbum totalmente eletroacústico, que é o terceiro cronologicamente, “Three Dimensions of Unrecognizement and Other Unknown Reaches”, em que usei materiais de Owl Dreams, Mister Sleepy, Lezet e Tod Shelton.

Qual a sua missão artística enquanto músico?
Sou um trovador que se desterritorializou e que não canta terra nenhuma, a não ser utopias possíveis de lugares sonoros. Meu lar é o universo. A língua que melhor domino é a dos sons de meu violão. Desejo despertar ou libertar as percepções dos paradigmas sonoros ou literários usuais e de sua zona de conforto e fazer com que as pessoas se integrem a possibilidades de transcendência. Não me sinto pertencente, tal qual Raul Seixas cantou muito ironicamente, a uma “linha evolutiva da música popular brasileira”. No meu caso, nem popular, nem erudita. Ou ambas integradas. Apenas faço música. E ponto.

João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema e colabora para o jornal A Tarde. A foto que abre o texto é de Weik Lemos / Divulgação.

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