DoSol

DoSol mostra como um festival pode fazer toda diferença

Um festival não é, ou pelo menos não deveria ser, apenas um apanhado de shows. Ele reflete uma cena e faz um retrato do que anda sendo produzido em uma cidade, região ou pais. No caso do Festiva DoSol, ao mesmo tempo que dá um bom panorama da produção independente brasileira, especialmente do rock, apresenta uma das cenas mais ativas e férteis do Brasil atualmente, a de Natal.

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Os vários espaços ocupados pelo Festival DoSol

O DoSol esse ano ganhou nova dimensão, ampliou seu alcance para várias cidades, saindo da capital do Rio Grande do Norte e chegando a Salvador, Maceió, Recife, João Pessoa, Campina Grande, até Fernando de Noronha, sem falar de sete outras cidades no interior potiguar. O créme de la créme, no entanto, foram os três dias do evento em Natal, de 6 a 8 de novembro. Em 72 horas foram mais de 70 shows, uma maratona que à primeira vista parece até loucura, mas que faz todo sentido e remete a alguns dos melhores eventos do ramo pelo mundo.

Com tantas opções, o festival acabou cumprindo uma das principais funções que um evento deste pode ter: apresentar artistas, mesmo que de qualidades variadas. E mesmo para quem circula há tempos nesse circuito independente, o DoSol foi uma excelente oportunidade para conhecer vários em poucos dias. Divididas em cinco palcos espalhados entre três casas de show e um container, todos dentro de um pequeno trecho fechado da rua Chile, na Ribeira, centro antigo de Natal, as atrações trafegaram por estilos diferentes, quase sempre derivados do rock. Do punk, hardcore e metal, ao pop, indie, psicodélico, rockabilly, post rock, mas também com espaço para o rap, reggae, dub, mpb, black music, lambada e experimentalismos.

O festival proporcionou, por exemplo, conhecer alguns dos nomes locais que já começaram a ficar badalados localmente, mas ainda são desconhecidos fora, como a Fukai, que tocou na noite de abertura. Relativamente nova, a banda apresenta uma sonoridade meio caótica com base rock e direcionando para vários caminhos e referências: groove, psicodelia, experimentações e até uma certa brasilidade. Fechando a primeira noite, não só segurou o público, como fez todo mundo cantar junto boa parte das músicas.

Era o primeiro indício do que seria visto dali em diante com boa parte dos artistas locais. Uma cena que visivelmente deu um grande salto, se tornando maior e mais profissional, com artistas produzindo trabalhos mais maduros, interessantes e diversos, mas também demostrando possuir um público próprio. A maioria dos shows das atrações locais estava quase sempre cheio, mesmo disputando o mesmo horário com nomes nacionais de maior peso.

No DoSol isso pôde ser visto claramente, com bandas mais pop, como Plutão Já Foi Planeta, Camarones Orquestra Guitarrística, DuSouto, mas também com grupos mais experimentais ou com sonoridades mais incomuns, como Igapó de Almas e Mahmed. A primeira com uma viagem experimental e psicodélica essencialmente brasileira, enquanto a última apresentou uma espécie de pós-rock vigoroso, redondo e competente, mas sem adicionar muito ao que já vem sendo feito no gênero.

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Plutão Já Foi Planeta talvez seja um dos melhores exemplos desse momento da cena de Natal. Com um rock pop simples, correto e bem feito, com canções leve e inofensivas, dialogando com a música brasileira e o rock contemporâneo, seguem a cartilha da geração influenciada pelo Los Hermanos, atingindo diretamente as gerações mais novas. Encheram um dos maiores espaços do festival e tiveram todas as músicas cantadas em coro.

Mais experientes e donos do festival, a Camarones Orquestra Guitarrística, do casal de produtores Anderson Foca e Ana Morena, mostrou como a estrada e os diversos shows fizeram muito bem. Mesmo com alterações na formação, fizeram uma das grandes apresentações do evento, com um rock instrumental coeso e vibrante, que não deixou ninguém parado no lotado espaço DoSol.

Uma cena só permanece se ela se auto-alimenta, e se o também veterano local DuSouto fez seu habitual show dançante divertido, foi um outro novo nome quem roubou a cena entre os locais menos afeitos ao rock. Luisa e Os Alquimistas tem a cantora e compositora Luisa Guedes à frente cercada por integrantes de outros grupos locais (DuSouto, Orquestra Boca Seca e Igapó de Almas) e fez um interessante show que trafega por dub, ragga, dubstep, reggae e cumbia, com pitadas de technobrega. No meio do ambiente extremamente roqueiro, Luisa com sua voz segura, timbre incomum e charmoso sotaque, alterou o astral e emplacou uma viagem carregada de psicodelia, com beats eletrônicos e uma sonoridade de primeira. É o novo nome da cena de Natal a se ficar de olho.

Em meio a maratona de shows, dezenas de outras bandas e artistas locais se apresentaram no festival. Era possível ver ao mesmo tempo o grupo Dubom Rap, mandando beats e rimas em um palco, e uma banda de rockabilly com topetes e contrabaixo acústico, em outro, como o bom The Bop Hounds. De veteranos do indie rock como a ótima Automatics, passando pelo power trio certeiro The Sinks, com uma formação totalmente nova (o paraense João Lemos do Molho Negro, na guitarra e vocais, o goiano Edimar Filho da Black Drawing Chalks, na bateria, e Anderson Foca, de novo, no baixo) até bandas novas como a Ruído de Máquina, ainda com uma sonoridade indefinida e irregular, o DoSol mostrou uma interessante cena fortalecida em Natal, muito por contribuição do próprio festival, que esse ano chegou a sua 12ª edição.

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Alguns destaques do festival DoSol, Aláfia, Carne Doce, Figueroas


Grandes nomes 

Se a cena local compôs uma parte importante da programação do festival, os convidados de fora do estado mandaram bem na outra parte dela. Atrações de 14 estados brasileiros passaram pelos três dias de shows. Do Nordeste apenas Bahia e Piauí não tiveram representantes. Nomes de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pará, Distrito Federal, Goiás e Paraná também estiveram presentes, além de bandas internacionais de Portugal, França e Suécia.

Uma coisa perceptível no festival é que muitos artistas ainda não conseguiram registrar em disco a força que possuem ao vivo. Bandas como Aláfia, Carne Doce, El Efecto, entre outras, mesmo com discos bem produzidos, fazem show muito mais vibrantes e marcantes. A Aláfia levou outro colorido ao DoSol, ganhando o público com uma eficiente combinação de música negra de várias vertentes: funk americano, black music brasileira, candomblé e afrobeat. Com muito suingue, ótima presença de palco, um trio de vocalistas afiado e foco em um discurso progressista, a banda ganhou o público. Ao vivo, eles ganham força, com a percussão e os sopros se sobressaindo mais. Aproveitaram para firmar posição contra o racismo, o machismo e a redução da maioridade penal, sendo bastante aplaudidos. No fim do show, o público aceitou a provocação e não perdeu a oportunidade para puxar o coro “Fora Cunha!”.

Também com um discurso politizado, mas apostando num formato com mais humor e ironia, a carioca El Efecto também fez um interessante show. Mesmo tocando no dia do rock mais pesado, entre bandas de metal e hardcore, o grupo aproveitou seus treze anos de experiência para passar por cima. Mostraram uma sonoridade ousada, meio experimental, inserindo baião, frevo, funk carioca, samba, salsa, cordel, ritmos tradicionais e até gospel, em meio a guitarras altas, humor e letras ácidas. Cheio de quebras de ritmo, variações de andamento e muita personalidade, os cariocas fazem um caos sonoro com consciência e tendo o que falar, se utilizando de percussão, trompete, fagote, escaleta, pifano e flauta, além de baixo, guitarra e bateria.
Difícil imaginar uma mesma banda abrindo rodas de pogo que se transformavam em quadrilha junina e ciranda.

Uma das novas apostas de Goiânia, a banda Carne Doce mostrou que é, na verdade, uma boa aposta para a tal música brasileira contemporânea. O quinteto mescla rock com música brasileira, mas pegando um caminho diferente do usual: mais Clube da Esquina do que Tropicália, mais Elis do que Gal, mais Boogarins do que Los Hermanos. Articulando o passado, mas apontando para um futuro diferente, o grupo indica uma tendência atual de uma nova leva de bandas. No palco são ainda melhores que em disco, com um tom climático e uma sonoridade singular. A banda ganha mais vida com os gritos agudos e o interessante timbre da cantora Salma Jô, solta no palco e mostrando uma enorme evolução em relação à gravação.

O Móveis Coloniais de Acaju é um dos exemplos mais bem sucedidos de como caminhar pelos caminhos tortuosos do mercado independente. Mesmo sem emplacar um grande disco, o grupo faz shows memoráveis e arrasta uma multidão por onde passa. Em Natal não foi diferente, e mesmo sem dois de seus integrantes e com um calor absurdo, promoveram alguns dos melhores momentos do festival, com enorme sintonia com o público.

As duas atrações pernambucanas presentes no festival passeiam por sonoridades próximas, ambas, Juvenil Silva e Tagore, flertando com os anos 70, com a música psicodélica nordestina e fazendo um rock carregado de sotaque brasileiro. Cada um com sua personalidade, Juvenil, agora injetando mais uma guitarra e percussão e com um jeito particular de cantar, próximo de um Raul Seixas, e Tagore, com guitarras lisérgicas e teclados espaciais, deixaram o recado do que anda rolando em Recife.destaquesdosolrock

Boa surpresa é ver uma banda do Maranhão, encarar o universo do rock indie inglês e do Radiohead com muita competência. A Soulvenir talvez precise ganhar mais personalidade, mas optar pelo caminho de criar climas melancólicos e produzir uma sonoridade densa não é das mais fáceis das tarefas. A banda consegue com solos de guitarra, baixo vigoroso, batidas secas, eletrônica, teclados espaciais, arranjos cuidadosos, ruídos, falsetes e canções que privilegiam as melodias. Também no universo mais indie, o veterano grupo Cigarettes apresentou um show sem tanto brilho, enquanto o também carioca Lê Almeida fez o contrário, com uma atmosfera própria e uma sonoridade que trafegava entre experimentações e ecos das guitar bands dos anos 90.

Já uma das decepções foi o rapper paulista Rico Dalasam, claramente prejudicado pela opção de não viajar sem seu DJ e convidar um local, que cumpriu apenas o papel básico, com beats frágeis, sem força e desentrosados. Rico mostrou como consegue segurar bem no palco, com uma boa performance, mas sem uma base rítmica, o show perdeu força. Boa parte das bandas como Aeromoças e Tenistas Russas, Moloko DriveMundo Alto, Aeroplano e Skabong, cada uma dentro de seu universo e estilo, também não ultrapassam a linha da competência, fazendo apenas bem o que se propõem, ainda sem muito além a oferecer.

No sábado, já se passava das duas da manhã, decorridos oito horas do festival e um bom público assistia aos últimos shows simultâneos em três palcos. O último deles a permanecer recebeu um pouco mais tarde uma das bandas locais mais celebradas, a DuSouto. No entanto, o público que resistiu, e não era pouca gente, aguardava mesmo era um dos convidados mais inesperados em um festival de rock. Depois de mais de quarenta shows, passava das 4 horas da manhã e entra no palco uma figura que parecia saído dos anos 70. Givly Simons é o homem à frente do grupo alagoano Figueroas, uma espécie de Massacration da lambada. Só ele e um tecladista, Dinho Zampier (Mopho/ Wado), desfilando hits” que levaram ao delírio o público, que sem se importar com o horário lotava o Galpão, um dos espaços do festival DoSol. Simplório, divertido, engraçado, quase um golpe, fez todo mundo dançar e cantar junto sem parar. Para se ter uma ideia, no hit “Melô do Jonas” umas vinte pessoas subiram no palco para fechar a segunda noite do festival com astral lá em cima. O cara está virando meio que um fenômeno para garotada.

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A noite do rock no DoSol, com punk, hardcore e metal.

O domingo e último dos três dias de festival foi o dia do peso, muito peso. Rock pesado de verdade, de várias vertentes, dia de hardocre, metal, punk e de se ver um pouco de tudo. Com direito a todos os clichês e extremos, de rodas de pogo, moshs, batidas de cabeça, vocalistas cantando em meio ao público e até momentos mais improváveis. Como ver o vocalista da banda Ak-47, apenas de salto alto, tapa sexo e máscara, sair de uma betoneira lambuzado de cimento direto para o palco.

O vocalista da veterana banda paulista Magüerbes, Haroldo Paranhos, roubou a cena por alguns minutos. Era o que mais se divertia, cantando no chão com sua performance particular, pogando, dançando, se batendo, puxando as pessoas do público e se enrolando com o microfone, enquanto no palco a banda mandava seu punk hardcore e afins. Ainda mais empolgados estavam os franceses da banda Do Not Legacy, quatro garotos insanos tocando com uma urgência de fim do mundo. Um som pesado, cheio de variações, efeitos e muita energia, com os músicos dando mosh e fechando o show tocando em cima dos PAs. Outra atração internacional, o power trio sueco The Fume, fez um show mais bem comportado, com bons riffs e uma pegada rock anos 2000.

Uma enxurrada de bandas aproveitou o festival para apresentar seus novos discos como a pesadíssima Monster Coyote, de Mossoró; o quarteto feminino Girlie Hell, de Goiânia, que precisa se soltar mais no palco, e a cearense Mad Monkees. Power trio com som pesado, raivoso e sem baixista, a Marrero fez show nos dois dias, apresentando seu disco de estreia, aposta do novo selo Stereomono, capitaneado por Miranda.

E se a ideia era se divertir, os jovens que lotaram o show do Dead Fish souberam seguir os preceitos de um bom show de rock pesado. Poucas vezes se viu tantos moshs juntos em tão pouco tempo, acompanhados de gigantes rodas de pogo e todo o clima de celebração juvenil de rock, como se deve ser. A banda capixaba, que estava lançado  seu novo disco “Vitória”, não deixou por menos, com o velho esporro hardcore, mesclando músicas novas com alguns de seus principais sucessos cantados aos berros pela massa empolgadíssima.dosolpublico

Talvez nem Anderson Foca e Ana Morena tenham imaginado lá no começo do DoSol, que ele ganharia as proporções que ganhou. Merecidamente, ele se transformou em uma das principais plataformas (seguindo um termo utilizado pelos próprios organizadores) para o cenário independente brasileiro. O festival não termina em si, através dele, vários desses artistas que passaram por lá circularam por outras cidades do Nordeste, seja nas etapas do DoSol espalhadas pela região, seja em turnês próprias ou feitas em conjunto entre bandas. Vários nomes que dificilmente conseguiriam tocar de outra forma nesses lugares.

Ao mesmo tempo, seria muito difícil imaginar essa cena potiguar com as proporções que tem tomado sem entrar no mapa através de um festival dessa magnitude. Se hoje, além da Camarones, bandas como Far From Alaska (escalada para outros dias do festival), o DoSol alavancou uma cena, que era quase oculta e amadora, que deu um salto e hoje está em alta produção, tanto em quantidade, quanto em diversidade e qualidade. Um festival serve para isso, pelo menos nos dias de hoje deveria servir, e faz uma diferença enorme.

Como é impossível dar conta de todos os shows, resolvemos reunir o que os jornalistas que estavam no festival mais gostaram:

Luciano Matos – el Cabong
Aláfia
Lê Almeida
Dot Legacy
Carne Doce
Camarones Orquestra Guitarrística

melhoresdosolMarcelo Costa – Scream & Yell
Dead Fish
Thiago Pethit
Camarones Orquestra Guitarrística
Móveis Coloniais de Acaju
Dot Legacy

Marcos Bragatto
Thiago Pethit
Camarones Orquestra Guitarrística
Dead Fish
Marrero
Móveis Coloniais de Acaju

Hugo Morais – O Inimigo
Aláfia
Carne Doce
Lê Almeida
Juvenil Silva
Augustine Azul

Luccas Oliveira – Amplificador
Thiago Pethit
Carne Doce
Fukai
Camarones Orquestra Guitarrística
Lê Almeida

Felipe Matheus – Atividade FM
Mahmed
Carne Doce
The Fume
Thiago Pethit
Augustine Azul

Marcos Xi – RockinPress
Thiaho Pethit
Dead Fish
Móveis Coloniais de Acaju
Camarones Orquestra Guitarrística
Figueroas

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