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O ano de 2012 na Bahia, marca um rompimento definitivo e a consolidação de um novo momento na música produzida no estado.

Está cada vez mais claro que a música em todo mundo vive um momento diferente, especialmente quando falamos de mercado, mas também na própria fruição. As dicotomias entre produto e arte se elasteceram e fica mais perceptível o que tem preocupação somente como produto mercadológico. A quantidade de produtos e artistas está cada vez maior, em todos os níveis e estilos, e com tanta produção e mudanças no mercado está cada vez mais difícil se alcançar sucessos absolutos.

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Continuamos vendo surgirem hits, como “Gangnam Style”, de PSY, talvez o maior do ano. No entanto, cada vez menos vemos fenômenos como esses permanecerem por mais de um punhado de cliques. Claro, ainda existem aqueles que fazem sucessos grandiosos durante anos, mas cada vez de forma menos devastadora, mais fugaz e menos relacionado a música do que a imagem.

Na Bahia, durante mais ou menos os últimos 20 anos, o que se consolidou foi o “mercado” determinando a produção artística com a prática de um modo agressivo da indústria. Um tipo de música saiu do Carnaval e se tornou regra, durante todo o tempo e em todo lugar. Diferente da mudança que ocorreu em todo lugar, aqui demorou para se perceber a virada do mercado. Uma realidade que se estendeu durante anos não só como “lei” de mercado, mas que influenciou inclusive a postura artística de toda uma geração, mesmo a que vivia fora deste ambiente. Mais, alterou até a percepção que o público passou a ter de música. Com o ‘modo entretenimento’ ligado no nível máximo, o artístico-cultural ficou praticamente abandonado.

Fruto disso é que ainda, mesmo em pleno 2012, a imprensa especializada, críticos e até uma parte da opinião pública se acostumou a repetir o clichê “apesar de ser a terra do Axé, a Bahia também tem”, quando vai se falar de qualquer outro ritmo vindo do estado, seja rock, samba, mpb, música eletrônica ou o que for. Mesmo numa terra que já rendeu nomes como Dorival Caymmi. João Gilberto, Raul Seixas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Camisa de Vênus, Gal Costa, Tom Zé, Batatinha, Maria Bethânia, entre tantos outros.

Mudanças – O que se percebe agora é que a música baiana recente, que passa ao largo desse mercadão, deixou de ter medo. Arrombou a porta e tomou de volta algo que lhe pertencia, mas que havia sido “usurpado” por este mercado. Elementos como ritmos afro, percussão, guitarra baiana, cânticos negros, entre outros, foram reconquistados. A ideia de se falar da vida cotidiana, dos problemas, mas também das belezas, da mulata, das curvas, do Carnaval, se falar da cidade e do estado também passaram a ser visíveis. Até a possibilidade de fazer sucesso, de crescer e sair de um universo mais limitado.

Todos elementos que de fato não pertencem, não exclusivamente, ao universo da Axé Music, nunca pertenceram. Seus artistas, produtores e empresários nos últimos anos apenas se utilizaram deles, muitas vezes (e não forma poucas) desfiguraram as características e forçaram a barra do que seria a música baiana. Vendendo essa produção como se fosse a única parte possível de ser visível do que era produzido na Bahia.

Isso foi derrubado, a resistência não existe mais da mesma forma e boa parte desses elementos foram “tomados de volta”. Por isso em 2012, vimos se consolidar não exatamente uma mudança da música feita na Bahia, mas a consolidação de uma produção que já vinha sendo engendrada fora do foco da mídia e desse mercado. O rock inserir percussão, o rap trafegar por ritmos afro, a música contemporânea soar baiana, o sotaque, o carnaval, a possibilidade de fazer sucesso deixaram de ser pecado e se tornaram permitidos.

Com isso, em 2012 vimos essa outra música baiana ganhar mais espaço e mais respeito, mesmo que ainda insistam naqueles clichês limitados de “terra do axé”. Essa outra produção ainda é uma música sem um mercado muito bem definido, mas que continua em crescimento e se fortalecendo como opção artística para um movimento de entretenimento cada vez mais raso, superficial e repetitivo. Apesar das aproximações em diversos elementos (e talvez por isso), as distinções ficaram mais claras. O diálogo dessa música baiana contemporânea se dá com um universo bem definido, com os blocos afro, com Armandinho Dodô & Osmar, com Lazzo, com Luiz Caldas, com Gerônimo, até com Carlinhos Brown, mas não avança sobre a música pop descartável do axé. Já consegue até fornecer elementos e artistas para esse ambiente.

Magary é um exemplo que vive isso atualmente e, mesmo sem perceber, só comprova que é importante que haja um distanciamento necessário. Não se trata de maniqueísmo, de um lado bom e outro ruim, mas de seperceber que há preocupação, foco, interesses diferentes em jogo. Um mercado tratando música como pano de fundo, repetindo fórmulas e sabendo tratar administrativamente muito bem seus produtos. Sem, porém, ao menos perceber a diferença dos artistas de seu próprio cast. Tratando tudo como numa indústria qualquer de sapatos ou sabonetes.

O cantor e compositor foi sugado por este processo e parece ser mais uma vítima dele. O trunfo que seria estar sob a batuta de uma produtora de porte e lançar disco por uma grande gravadora, talvez de imediato seja triunfal, mas já se mostra um limitador. O cantor e compositor, que surgiu com uma boa proposta musical, já começa a repetir clichês da Axé Music e da indústria, e, se não se cuidar, dificilmente vai se sustentar, pelo menos artisticamente.

Se 2012 foi um ano de virada total de Magary, se mostrou um ano de consolidação para outros dois nomes, a Orkestra Rumpilezz e a Baiana System, exemplos concretos dessa retomada da Bahia na música feita no estado longe do entertainment. A primeira, sob a maestria de Letieres Leitte, levou sua afrobaianidade com jazz, a base de percussão e sopros e uma erudição ancestral para diversas partes do Brasil e se consolidou como uma das grandes novidades na música nacional.

Enquanto a re-significação da guitarra baiana pela BaianaSystem, estimulado com injeções de dub, ijexá, eletrônica e até arrocha comprovou que algo novo estava acontecendo por aqui. Passaram a fazer um dos melhores shows vistos no país, inclusive lotando os lugares onde se apresentaram em Salvador, e como resultado foram parar até na Sibéria.

Ambas colheram frutos de seus discos de estreia, se apresentando em diversas partes do Brasil e do mundo como bons representantes da música baiana do século XXI. Foram o exemplo consolidado em 2012 de que a cultura baiana, ao contrário do que arvoram por ai, não está em crise. Pelo menos a música feita na Bahia não está em crise. O que está em crise é um modelo de mercado, uma forma limitada de pensar e um modo único de se ter acesso a essa cultura, que a Bahia demorou pra perceber.

Mais exemplos – Nem todos perceberam, mas a Bahia tem assistido a um forte momento de orquestras que trafegam por caminhos pouco tradicionais, promovendo encontros de sonoridades, alguns deles impensáveis até pouco tempo. Além da Rumpilezz, a Orquestra Afrosinfônica, formada desde 2008, também insere elementos da música afro, mas mantendo uma estrutura ainda mais tradicional de orquestra, com naipes de cordas, madeiras, metais e percussão somados a instrumentos regionais, como xequerês e tambores.

Ainda mais radical é a Sanbone Pagode Orquestra, que “eleva” o pagode baiano, a famosa quebradeira, para o patamar erudito, com 25 músicos munidos de saxofones, trompetes e trombones, mas também percussão, guitarra, baixo e teclado (com sintetizadores, como se usa no pagode) executando sinfonias criadas pelo maestro Hugo Sanbone.

A própria música erudita baiana, com orquestras mais tradicionais, vem ganhando espaço, público e força com novidades. Se a OSBA permanece como principal orquestra do estado, o Neojibá (Núcleo de Orquestras Juvenis da Bahia) mostrou ser um projeto que não só coloca jovens e crianças para tocar música em alto nível, como tem popularizado o hábito de ouvir música erudita. Concertos lotados no TCA, na Concha Acústica, em praças públicas, e não só em Salvador, mas no interior também, como em Vitória da Conquista, mostram isso. Em 2012, o projeto completou cinco anos e continuou ganhando destaque, com criação de novas orquestras e núcleos mais espalhados, chegando agora em bairros periféricos de Salvador e outras cidades do estado.

No ambiente mais rock/ pop o Retrofoguetes e Ronei Jorge com os Ladrões de Bicicleta, e ainda antes nomes como O Cumbuca ou Lampirônicos e mesmo Lucas Santtana, já haviam, cada uma a seu modo, quebrado o muro que distanciava elementos essencialmente baianos do universo de novos artistas preocupados em fazer música. Foram nomes que contribuíram para estreitar a relação com elementos de uma música baiana mais ligada a elementos afro, guitarra baiana, ritmos populares e sonoridades carnavalescas. Algo que o argentino/ baiano Ramiro Musotto também atuou como um dos pioneiros, mesclando eletrônica com blocos afros, ijexá e pagode.

Se esse rompimento já havia começado há alguns anos, 2012 talvez tenha sido o ano que tenha ficado definitivamente claro e escancarado. Uma liberdade de criação e pensamento, sem melindres, sem vergonha, sem medos. A inserção destes elementos não é necessariamente uma regra, mas deixou de ser uma proibição. A Bahia continua, como sempre, produzindo artistas e música relevante sem essas misturas, mas essa abertura permitiu que se passasse a dialogar mais claramente e no ano que terminou isso transpareceu ainda mais forte e, melhor, em sintonia com uma necessidade do público.

Rock e rap – O novo disco da banda Cascadura, o duplo “Aleluia”, é sem dúvida o marco disso no ano. Uma veterana banda, que surgiu com um rock mais tradicional, com 20 anos de estrada lança um álbum conceitual e nele trata da capital baiana como tema, de forma como pouco antes já se fez. A banda não se intimidou em fazer o rock dar as mãos com atabaques, ritmos de terreiros de candomblé e uma musicalidade que roqueiros baianos sempre tiveram medo. Um acerto de contas, clareando a vista e deixando mais franco o diálogo com as realidades mais próxima.

Outra banda de rock baiana, a Vivendo do Ócio, não radicalizou tanto. Agora vivendo em São Paulo, o quarteto fez um grande segundo disco, “O Pensamento é um Imã”, resultando numa enorme evolução comparado ao primeiro disco. A banda manteve a pegada rock, moderna e energética, mas mergulhou também em suas origens e em entender melhor o que é essa cidade/ estado. Como na bela “Nostalgia, canção que fala da saudade da Bahia e cita até Vinícius de Moraes, ou em “Radioatividade”, uma ode a Salvador e seus bairros.

Há diversos outros grupos do universo pop que seguem, cada a sua maneira, injetando elementos dessa tal “baianidade”, ou seja lá como queira se definir. Isso aparece em trabalhos como o da Velotroz, que lançou um belo EP em 2012, a Tabuleiro Musiquim, que assume esses elementos mais claramente, desde falar de Carnaval até a brejeirice baiana, até na Maglore, com inserções menos óbvias, mas que aparecem mais evidentes nas novas músicas. Ou até o rock instrumental da Vendo 147, que se mantém fiel ao rock, como gostam os puristas, mas não se acanha de inserir guitarra baiana para construção de sua sonoridade. Ainda assim, o rock baiano e soteropolitano segue vivendo seu próprio caminho e mantendo suas características, muitas vezes bastante contestador, com grupos como Gozo de Lebre, Hessel, Jonas, Yun-Fat, que se destacaram esse ano com seus shows, discos e boas ideias.

A Suinga é o mais “radical”, não é rock soando axé, é o próprio axé recriado por um bando de garotos que cresceram no mundo da então música independente. Algo como se fosse uma continuação da produção de Gerônimo, Luiz Caldas, Asa de Águia e Chiclete com Banana de 20 anos atrás, com o tempo sendo paralisado, sem passar pela indústria metendo o bedelho e criando fórmulas fáceis, e eles continuando a partir dali.

As cantoras Márcia Castro e Mariela Santiago são outras que inserem um tempero com classe. Márcia Castro com sua MPB moderna, regrava grandes mestres e insere sem nenhum temor referências de clássicos do Carnaval baiano. Vale o pagode do Gerasamba introduzindo Novos Baianos, ou o pagode d´Oz Bambaz abrindo Tom Zé, numa versão carnavalesca anos 2000. Já Mariela Santiago investe no encontro do jazz com o samba chula, das experimentações com os ritmos afro-baianos, da tradição com modernidade, e tudo junto trilhando o mesmo caminho.

O rap baiano seguiu um caminho de tentar se descobrir nas suas diferenças do gênero. O grande destaque do ano foi a banda O Quadro, de Ilhéus. O grupo já existe há muitos anos, mas só em 2012 conseguiu lançar seu primeiro disco. E se por aqui, ao invés de emular o afrobeat aparece uma orquestra revigorando a música afro-baiana, ao invés de se criar sound system tal qual na Jamaica, se cria um grupo que bebe na música da ilha caribenha, mas insere ijexá e guitarra baiana, no rap não seria muito diferente. Não que O Quadro seja a primeira banda a mesclar rap com outros ritmos, mas, ao lado do Opanijé, mostrou um rap com características essencialmente baianas e com a cara da miscelânea que vem formando a música no estado há séculos.

O Quadro fez um disco mantendo a verborragia dos MCs, atacando verdades estabelecidas e com uma veia crítica fiel ao que de melhor se produz no rap. Porém, a banda não sustenta sua musicalidade simplesmente com batidas produzidas por um DJ, nem se resume a batidas repetitivas com inserção de samples como sustentação para as letras. É uma banda mais tradicional, com baixo, guitarra, bateria, mais percussão e programações, extraindo dessa formação um som mais orgânico e vivo e uma sonoridade que passeia por afrobeat, dub, rock, ijexá, reggae, black music, jazz, mas é essencialmente rap, rap baiano.

De forma parecida é com a Opanijé, que se não lançou ainda seu primeiro disco (ficou pra 2013), mostrou durante o ano em shows na Bahia e em outros estados, sua combinação de rap, com ritmos afros, cânticos e outros elementos. Um discurso e uma levada com personalidade baiana.

África-Bahia – A negritude assumida hoje na Bahia é um dos maiores fatores para esse momento repleto de novidades na música local. A África e vários de seus diversos ritmos, a Jamaica, a música caribenha, a back music, a mistura com ritmos mais recentes como rap, dub, reggaetón, dancehall, entre outros, além do que já se criou na própria Bahia, com samba, ijexá, samba reggae, chula, samba de roda e as transformações de misturas seculares. Essa junção de coisas, nem sempre palpáveis ou conscientes tem criado uma sonoridade particular.

A música africana por aqui não soa como algo exótico enxertado de forma artificial, faz parte de uma realidade comum e por isso não necessariamente se resume a afrobeat. A sonoridade de Fela Kuti é só um dos elementos que são absorvidos. Alguns dos nomes já citados, além de outros como Tiganá Santana e Mateus Aleluia, ex Tincoãs, captam essa sonoridade, unindo ancestralidade com a contemporaneidade baiana. Tiganá acaba de lançar seu segundo disco, lançado por um selo sueco apontando para uma carreira internacional, que, inclusive, já rendeu críticas bastante elogiosas.

O Bembatrio parte de outro universo, com shows fervorosos, grave no talo, groove irresistível e uma mistura da música jamaicana moderna, ragga e dancehall, com samba reggae, chula e repente. Formado por dois MCs e um DJ, o grupo fez alguns dos shows mais disputados e suados dessa parte do continente. Eles vêm de uma escola de dub que floresceu há alguns anos com o Ministereopublico e já derivou outros nomes como DubStereo e Soraia Drummond. A música negra também é a fonte de Dão, nele o soul/ funk aparece emancebado com samba baiano, enquanto Luiz Natureza, um veterano que acaba de despontar aos 66 anos, surge aceitando que reggae e ska dialoguem com arrocha e música brega.

Toda essa mudança, o florescer dessa nova música baiana, já começa a ser vista. Ainda de forma tímida, mas cada vez mais forte, vai ganhando público e respeito, mudando a forma como se pensa a música feita por aqui. Muitos desses artistas se destacaram esse ano em premiações, festivais na Bahia e fora do estado, em críticas positivas da mídia especializada e em muitas dessas listas de melhores do ano. É verdade que muito dessa produção é desconhecida da maioria, tanto do público, quanto do próprio meio musical.  Mesmo numa luta contra um mercado forte, ainda manipulador de rádios e emissoras de tv, praticante de jabá, esses nomes mostram que a música baiana tem muito mais a aprender e a mostrar. A música baiana tem uma nova cara, gosta de Carnaval, percussão, guitarra baiana, mas é muito mais do que isso.

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